ESPOSENDE E O SEU CONCELHO


CANTINHO DOS LOBOS DO MAR

CANTINHO DOS LOBOS DO MAR
por Carlos Barros












As codornizes

Histórias da Guiné

 

Existia no destacamento de Nova Sintra uma caçadeira de um cozinheiro que  tinha  sido comprada a um comerciante em Bissau, uma arma usada e que não revelava a mínima  segurança porque,  algumas vezes, os cartuchos rebentavam no cano, constituindo um perigo iminente.

Mas, os militares, muitas vezes arriscavam e, lamentavelmente, não olhavam ao perigo e foi o caso do furriel Barros que desafiou esse mesmo perigo.

Tendo como companhia o João cozinheiro, o Barros foi caçar, ao fundo da pista de aviação, onde abundavam muitas codornizes que estavam na fase da nidificação e, passados uns minutos, foi vista uma codorniz, empoeirando-se no chão.

Furriel, olha alí uma codorniz, está a vê-la, avisou o João Padeiro?

O Barros observou o chão e viu uma codorniz, muito imobilizada e com a arma carregada, disparou um tiro e, passados segundos, uma codorniz levantou , para o meio de um canavial.

  O João apreensivo e moralizador com o resultado do tiro, disse ao Barros que se esquecesse, pelo menos, feriu a codorniz que supostamente, tinha caído no referido canavial, animou o seu amigo.

Os dois caçadores tinham percorrido  vinte  metros e, mais  um pouco adiante, o João gritou a “sete foles”:

- Furriel, olha estão duas codornizes ali mortas com o seu tiro!...

O Barros nem queria acreditar no sucesso da sua caçada e, provavelmente, estava um casal de codornizes juntas, e o tiro atingiu-as sem o Barros se aperceber e estariam mais algumas nesse bando, que fugiram esvoaçadas para o citado canavial.

O furriel nem deu mais um passo para a frente, regressou com o seu amigo ao quartel, com as duas codornizes presas ao cinto do camuflado, dando a transparecer que era um autêntico caçador, mal sabiam os outros militares que aquela ridicula”matança” fora obra do acaso…

  Os Alferes Figueira e Felício felicitaram o Barros pela caçada, com o Domingos Oliveira, do 3º grupo de combate, a oferecer-se para as depenar, com a intenção de comer uma mas, o Barros já “militar sabido” das manhas dos soldados, agradeceu a gentileza e foi ele mesmo depená-las e os cozinheiros Eduardo e Rochinha prepararam o repasto, limitando-se a “comer” o cheiro delas…

 Na messe, o Barros deliciou-se com as duas codornizes cozinhadas e deu duas perninhas, aos amigos Elias e Mendonça, uma a cada um, porque não dava para mais…As perninhas dessas infelizes aves tinham mais osso que carne…

O Sousa e o Vieira, Vago-Mestre, tentaram provar o aperitivo mas o Barros apenas lhes deu um pouco do molho que deslizou sobre o arroz com salsichas….

Foi melhor que nada!

                                                         

 

  Ex-Furriel Miliciano

    Carlos  Barros                                                

Guiné-Bissau- Quartel de Nova Sintra  1973                    


A televisão a” gatinhar” em Esposende

                                        Dia Mundial da Televisão         

   O Dia Mundial da Televisão foi comemorado no dia 21 de novembro, sendo proclamado em 1996 pela Assembleia Geral das Nações Unidas, tendo como primaciais objectivos promover o intercâmbio mundial de programas sobre a Paz, Segurança, Desenvolvimento Económico e questões sociais e culturais.

  Em 17 de dezembro de 1996, já com o período do Natal a “bater à porta”, a Assembleia Geral das Nações Unidas (A.G.N.U.), na Resolução 51/205, decidiu proclamar o  Dia Mundial da televisão em 21 de novembro, uma iniciativa considerada de grande impacto das Comunicações geotecnológicas no cenário mundial.

  A Televisão Portuguesa. RTP, Canal Estatal, iniciou as suas emissões experimentais a 4 de setembro de 1956, na Feira Popular em Lisboa, passando a 7 de março de 1957 às 21:30 a emissão regular e a RTP possuía  regras próprias que outros Países não dispunham, porque Portugal tinha os Meios de  Comunicação Social , sob o controlo implacável da Censura e só a queda do Estado Novo, a 25 de abril de 1974 concedeu uma maior liberdade e, por consequência, um  certo grau de independência da sua Programação.

   Em 1957 a televisão veio despertar muita curiosidade em Esposende e por todo o País em geral e nesta vila, banhada pelas águas serenas e despoluídas do  Cávado, poucas casas dispunham de televisão sendo  instalada publicamente, pela primeira vez,  na Casa do Povo de Esposende que funcionava nas tardes de sábados e domingos.

  O senhor Costa, residente  em Perelhal-Barcelos, era um funcionário da Casa do Povo , homem extremamente zeloso e amigo das crianças, e quando aparecia nessas tardes para abrir a porta,  inúmeras crianças esperavam-no para verem televisão geralmente desenhos animados-Gato Félix…- ou filmes de “Cow Boys” muitos apreciados pela criançada da ribeira que recebiam “formação” nesses filmes para as guerras norte-sul…

  A televisão também era vista, por alguns ribeirenses,  na Casa Losa, que vendia televisores, e o “maralhal”  à socapa,  espreitava pelas portas mas, eram sempre visões rápidas e fugidías sobre o controlo e condescendência da D. Amélia Losa e dos seus filhos, Manuel, Toninho  e Alexandre Losa.

  Na Casa de Pasto do Torres, mais tarde, explorada pelo senhor Licínio, na actual rua Nossa Senhora da Saúde, no local onde está instalada  a Biblioteca Manuel Boaventura, aos sábado e domingos, pagavam-se cinco “croas” de rebuçados e entrava-se para se ver no “ecrã mágico”  uns filmes e alguns escassos   jogos de futebol geralmente internacionais.

 O dinheiro era escasso e alguns proventos da rapaziada, vinham das “receitas” dos jogos de futebol  na ribeira onde se jogava a um escudo ou mesmo a cinco croas, o que era raro…Uns recadinhos a alguns comerciantes de Esposende e a venda de jornais e papelões velhos e mesmo algum ferro velho, garantia algum pecúlio financeiro , amealhando-se, deste modo, dinheiro para a Festa da Senhora da Saúde : carrinhos eléctricos, “cadeirinhas”, matraquilhos ou na compra de bolas e simples brinquedos- espingardas, pistolas de fulminantes, pandeiretas, espadas, arcos e flechas…- vendidos nos bazares do Souto da Senhora da Saúde

   Em 1962 (época de 1961/62) realizava-se, no dia 2 de maio, a  sétima final dos Clubes Campeões Europeus, entre o Benfica,  treinado pelo “Magiar” Bela Guttman e o Real Madrid, treinado por Miguel Munõz e os ribeirenses, mais afoitos e ativos no futebol da ribeira, juntaram umas “croas”-patacos- e foram ver essa final na Casa de Pasto do Torres  e após o pagamento dos rebuçados, lá entraram todos  entusiasmados, subindo umas frias escadas de pedra para se sentarem, no primeiro andar, nuns longos bancos “corridos” e mesmo no soalho esburacado do chão, lavadinho com água e sabão amarelo comprado na mercearia do Abílio Coutinho, no Largo Rodrigues Sampaio ou no Francisco Areias..

   Com a sala cheia de crianças e alguns adultos, houve alegria e gritaria  a “rodos” já que o Benfica ia marcando golos com o Eusébio em grande nível, marcando  2 golos - 64´e 69´-  apesar dos calafrios iniciais com o Puskas a marcar 3 golos pelo imponente Real Madrid (1-0, 2-0; 2-1; 2-2; 3-2: 3-3; 3-4; 3-5 final para o Benfica).

   O todo poderoso Real Madrid de Araquistain, Gento, Tejada, Di Stéfano e de Puskas foi justamente “humilhado” pelo Benfica de Costa Pereira, Germano, Coluna, Águas e Eusébio entre outros briosos e heróis jogadores.

   No final do jogo, foi a festa e a correria para as casas porque o jantar, quando havia, estava na mesa ou no sonhos dos meninos…

    Estávamos no tempo dos “cromos”, dos “papeizinhos” de jogadores que eram vendidos na Casa de Pasto Marino, na Loja da Locádia e no Zé Arménio. Jogava-se   futebol na Ribeira, Junqueira, campo do Pinto ou do Emilinho  a “papeizinhos”, uma espécie de “nota” que se pagava aos vencedores… Não havia árbitros nem “VARs” e tudo corria bem, sempre com discussões e ameaças mas, não passava disso…

   Com o “andar do tempo” a televisão em Esposende instalou-se  nas casas e hoje é raro o lar que não tenha um aparelho de televisão dotado de  inúmeros canais e com outras imensas  potencialidades informativas, recreativas e culturais, onde o vínculo comercial  é bastante utilizado.

   No dia seguinte, 3 de maio, houve logo no Estádio da Ribeira, um Real Madrid-Benfica, num “faz de conta” e pelo Benfica improvisado com as equipas formadas-escolhidas- pelo Tachi e pelo Carlinhos da Jandira e no final do jogo, tinha de ganhar o Benfica como veio a acontecer já que nessa equipa jogavam os melhores jogadores da Ribeira - Armindo Murraca, Arrebita, o Piolho,  Augusto da Galga, Paulo Gatinho, Luizinho, Tarrio, Carlinhos, …

Mais tarde, organizaram-se vários encontros, no Estádio da Faustina, entre as equipas do Zé Feliz e do João Café, dois grandes selecionadores da década de sessenta.

   No final, na ideia dos jogadores do Zé Feliz, quando se ganhava , havia a esperança de comer umas iscas ou bolinhos de bacalhau ou uma posta de bacalhau frito com uns nacos de sêmea e, que por vezes, acontecia…

  Sem as atuais, tecnologias as crianças e o jovens de Esposende, das décadas se cinquenta, sessenta e setenta,  brincavam felizes e o pião, a corda, os jogos, o botão, a afunga –fisga-,o gancho com a  gancheta, a motinha, as caricas, o jogo ao prego, as corridas de ciclismo com as pasteleiras, os mergulhos no rio-escadinhas-, os assaltos aos ninhos, pomares, cenouras, nabos de Gandra, tudo isto e muito mais, alegravam as crianças desse tempo, muitos deles-pescadores…- abandonavam a Escola, para trabalhar…

   Nesse tempo, a nossa sorte, foi não existir pandemia caso contrário, seriam crianças “confinadamente infelizes” . Havia sim , outro  COVID 19  (Crianças de Ontem, Vivas,  Irriquietas e Despachadas, 19 …50,…60,…70…) num tempo quase “cósmico” onde se inventavam brinquedos e se criava a felicidade, com a imaginação e a fantasia do maravilhoso infantil.

Eu, como criança, que vivi nesses tempos difíceis, numa sociedade economicamente e socialmente carente, onde o analfabetismo  e a “incultura” predominavam e “Saber ler e escrever” era uma dádiva dos céus, para muitos meninos e meninas desse tempo, algumas destas, não brincavam porque tinham de apanhar isca para vender aos banhistas ou apanhar sacas de plástico no final da feira quinzenal de Esposende, para serem vendidas na Lota , junto ao Salva-Vidas, para pôr o peixe que os pescadores vendiam na “ arrematação”. Quando “licitava” o peixe à peixeiras de Esposende, dizia o divertido  Tio Sampaio às peixeiras:

- “Badalhocas, quereis o peixe de graça, suas p….as…”! Era a luta pela sobrevivência no rio, mar, no campo, no monte, no pinhal, nas feiras, nas lojas, nas tascas , nas mercearias e com um “mar cão”, os pescadores ficavam em terra, socializando-se nas muitas tascas/tabernas que se espalhavam por Esposende, contando as suas  histórias e algumas peripécias  da vida do domável rio e no indominável mar.

  Todas estas e muitas outras histórias e vivências, deveriam ser visionadas na Televisão, num dia de nevoeiro, homenageando este Dia Mundial da Televisão, em memória das gentes de Esposende.



Calcorreando os corredores da “história”…

 

     Terminado o Curso na Escola Normal do Porto (Antigo Magistério Primário)  o nosso amigo Lima, recém formado, esperava pela colocação e, quem tivesse obtido uma boa nota-Classificação/habilitação-, o trabalho estaria mais acessível, provavelmente numa Escola nos “confins do mundo”, onde a “civilização estaria adormecida” ou teimava em hibernar…

  O Lima, já professor encartado/diplomado, foi tomar o seu pingo ao café Nélia servido pelo simpático e sempre sorridente, João “Tamanqueiro” ou pelo Benajamim “Come croas”. O verão estava na despedida e, inopinadamente,  à entrada deste estabelecimento, apareceu a sua mãe Jandirinha com uma carta na mão, bem apertadinha. Era o pronúncio de uma novidade- trabalho- , missiva há muito tempo esperada…

Ainda se podia frequentar os cafés  com os amigos e não se augurava , na altura,  o terrível surto epidémico  actual  e o COVID 19 morava nos sonhos dos homens.

  O Lima, muito expectante, abriu o envelope e pensou logo que devia ser a sua colocação numa Escola, um primeiro passo para o “mundo do trabalho”, como docente e não se enganou…

Dentro do sobrescrito, estava um Alvará, já com o destino marcado: Escola de Asnela, freguesia de Riodouro, Cabeceiras de Basto….O dia vinte e cinco de outubro de 1979 marca o princípio de uma aventura em terras de Cabeceiras de Basto, numa das “aldeias” da freguesia de Riodouro, umas das maiores do País, em termos de área …

  Por força do destino, o professor Abreu, grande amigo do Lima, também foi colocado nessa mesma Escola e ainda bem, porque reencontrou-se uma dupla de amigos de infância, clientes assíduos de aventuras da ribeira e do rio Cávado.

 O senhor Pilar, um “velho e solidário” amigo do Lima, com o seu largo chapéu, homem de espírito extremamente bondoso, deu boleia no seu Austin, a esta “dupla”, e lá foram com destino a Asnela , percorrendo a estrada das “seiscentas curvas” da Póvoa de Lanhoso... Asnela, tinha um acesso difícil, um caminho ou melhor, uma espécie de “estrada paleolítica” esburacada, lamacenta e bastante estreita. Fez-me relembrar, as picadas e os estradões da Guiné mas, sem capim e sem minas…

  Após a visita à Escola de Asnela os dois professores neófitos, ficaram instalados na vila de Cabeceiras de Basto, na Pensão Vilela onde pernoitaram, um pouco desanimados com as péssimas condições de alojamento e trabalho que presenciaram.

  No dia seguinte, o Lima  foi ver a Escola Primária e ficou absorto e estupefacto ao olhar para aquele “edifício” que parecia arrasado por uma bom “napalm” com o telhado  caído,  traves podres, entrava água por todos os lados, a porta tinha  um  ferrolho bloqueado e a fechadura estava enferrujada até à medula…  Os dossiers dos alunos encontravam-se espalhados pelo chão e pelas carteiras repletas de caruncho e os bancos chiavam como “ratos” enraivecidos…Para ter acesso à “escola,  existiam dois degraus , “ornamentados” com musgo, com garantia de queda…

  O insatisfeito e revoltado Lima, falou com o senhor João, o “Homem-Grande “ da aldeia e disse-lhe que ia embora e não aceitava a escola, afirmando que era um atentado à dignidade dos alunos e dos professores.

  No dia seguinte, o Delegado Escolar Professor Artur tomou conhecimento das condições da Escola tendo ido, com a sua Renault 4, observá-la com o professor Lima, e reconheceu que de facto, aquilo parecia um “palheiro” e impróprio para ser utilizado e decidiu arranjar outro local.

 Uma “nova/velha” escola foi encontrada, numa casa, com divisões de madeira ressequida com um telhado com “ar condicionado” e, por debaixo, havia um curral de vacas e bois, que no Inverno funcionava como uma improvisada  “salamandra” mas,  como é natural, todas as manhãs, para se iniciarem as aulas, a dona do gado tinha que o retirar para se deslocarem para  novas pastagens e, deste modo, os alunos já não ouviam a orquestra sinfónica dos muares das vacas…

  O leite escolar era serviço em pacotes de litro e ainda não havia as embalagens individuais, fervido numa grande panela na Escola e, no final das aulas, os professores levavam essa panela para casa para evitar visitas dos ratos que eram atraídos pelo cheiro do leite, o que acontecia no início dos primeiros dias de aulas. Era a caça aos ratos que detetados, fugiam em várias direcções para os seus aposentos-buracos/tocas-

  A casa de banho da Escola, era um cubículo de madeira, com uma porta chiadeira onde havia um buraco redondo adaptado para as descargas dos excrementos. Naturalmente, o cheiro espalhava-se pela escola, num ambiente ecologicamente pouco agradável mas, era o que havia! Estavamos nos inícios da “pégada ecológica,” tão badalada nos dias de hoje…

 No final das aulas, os professores percorriam a pé, desde Asnela a Cabeceiras de Basto, uns longos treze quilómetros, debaixo de calor, chuva, nevoeiro, geada intensa, frio e de outras intempéries brindadas pelos deuses do Olimpo, nem sempre afáveis…

  O Conselho Escolar realizava-se, mensalmente,  em Leiradas e lá iam os inditosos e alegres  professores por montes e vales até uma outra escola, sempre a pé, fintando as pedras e as poças de água…Nos dias de chuva intensa,  estes “aventureiros” tinham de andar por cima dos muros, para fugirem às poças de água e aos regueiros que nos brindavam com as suas cristalinas águas. Algumas pegas e gaios do denso  pinhal, testemunham essas caminhadas destes dois ”bandeirantes”, que todos molhadinhos lá chegavam ao seu destino onde uma colega, desterrada dos Açores, o esperavam para a reunião semanal.

  O Lima, com os seus conhecimentos de pedagogia e metodologia e de didáctica fresquinhos, ia partilhando os seus conhecimentos nos Conselhos Escolares vizinhos, sempre como convidado de outros professores que “respiravam “ares de aposentação”. Era uma nova “aragem de mudança e de inovação pedagógica”, sempre bem recebida pelos colegas e apraz-me registar as maravilhosas professoras que trabalharam com os colegas do Lima e do Abreu, relembro-me as professoras Augusta Gonçalves, Luísa Queirós, Sameirinho, Infantina, Ana  Maria…

  O Lima e o Abreu tinham uma casa alugada em Asnela, por quinhentos escudos mensais mas, ficar lá, sem água e sem luz , não era tarefa fácil de suportar já que estavam  justamente habituados, a melhores condições de vida em  Esposende. O Lima, levou uma vela de estearina, comprada na Casa Braga, que foi colocada na cabeceira da cama e, como leitor militante e assíduo, releu umas páginas de um livro sobre pedagogia Moderna, Edição Brasileira (Globo) e, no dia seguinte e, ao fim de  meia hora,  ardiam-lhe os olhos…

  Numa segunda-feira, o  Lima, confessou ao seu amigo Abreu:

-Não, nunca mais fico em Asnela, porque ir para a cama às 8 horas da noite não dá, nem tão pouco há um café neste lugar…Que saudades da Nélia, da Havaneza e da saudosa Primorosa ! Se houvesse uma tasca como a da Nazaré ou do Barrigana, como em Esposende, sempre dava para comer uma sande de chouriço ou de marmelada, desabafou o Lima para o seu amigo Zé Pilar, cujo pensamento estava em horizontes siderais….

À povoação de Asnela, o padeiro vinha um ou dois dias por semana e não existia qualquer mercearia ou mesmo “tasco” para se beber um simples café ou pingo.

Diariamente, estes dois “caminhantes” percorriam 6,5 kms para cada lado até chegar ao destino, Escola de Asnela e quando chegavam à Pensão estavam mais mortos que vivos…Por vezes, apanhavam uma boleia num carro de bois ou num camião da EDP que, na altura, estava a instalar postos para a eletrificação da Aldeia e lá vinha o Lima, sentado nos postos de madeira, com o “rabo” massacrado pelos solavancos, enrolado no emaranhado dos fios de eletricidade e as ferramentas dispersas nas traseiras do camião saltitavam como gafanhotos”tontos”. O amigo Zé  também era um dos “clientes”  dessas inopinadas e bem-vindas boleias  , sempre eram uns quilómetros poupados a pé…

O professor Artur, Delegado Escolar de Cabeceiras de Basto, pessoa gentil, sempre  compreensivo e de uma extrema cortesia tinha informado os professores que iam construir uma escola nova que estaria pronta no final do ano letivo e aquilo parecia um milagre mas, infelizmente, já não seria para o tempo destes dois esposendenses!...

A Escola Primária foi construída, equipada com mobiliário moderno - mesas, cadeiras e armários- e no final de maio estava prestes a ser inaugurada…

O professor Abreu estava de atestado médico e o Lima pensava para os seus “anjos da mente”:

- Uma escola nova e eu a dar aulas numa escola velha, não pode ser!..

Ganhou coragem, respirou fundo, pediu as chaves a um trabalhador responsável pela construção da escola e tomou uma ação revolucionária: Pegou nos seus alunos e enfiou-se na Escola nova depois de limpar o imenso pó que havia nas mesas e teve mesmo que exterminar centenas de moscas com um pano do pó, comprado na Feira de S. Miguel, porque “mata-moscas” era um recurso tecnológico que não existia na altura…

 O professor Lima trabalhou “clandestinamente” na nova escola e os alunos “viveram” momentos aprazíveis com aquelas condições com o equipamento escolar novo, apenas a “Caixa  Métrica Escolar” cheirava a bolor, da muita humidade que acolheu no “seu ventre”.

 Quando o Lima ia à Delegação Escolar falar com o professor Artur, este Delegado muito atenciosamente  dizia-lhe:

- Colega, para o próximo  ano escolar, vamos inaugurar a nova Escola e bem merece, assim como os seus alunos, e terá outras condições de trabalho! O Lima, fazendo-se de ignorante e cúmplice, ouviu com atenção esta informação muito estimulante e mal ele sabia que este professor já tinha inaugurado a Escolinha…

Ainda hoje, o Lima não sabe, se o professor Artur sabia desta ação revolucionária e se soube, fez bem calar-se…

 Os professores Lima e Abreu, nesta aldeia de Asnela, foram extraordinariamente bem recebidos e ajudados pela população, especialmente pelo senhor João e sua esposa D. Celeste Moita que fizeram das “tripas coração” para ajudar esta dupla de professores, oferecendo –lhes hortaliça, leguminosas, batatas,  cenouras, carne de porco e mesmo garrafões de vinho  que , naturalmente, se estragavam – e a “lezíria do vinho testemunhava isso mesmo…- já que estes professores bebiam mais água que álcool, nas raríssimas vezes que almoçavam na casa desta  recôndita Asnela. Como “parecia mal”  não aceitar estas ofertas, lá teríamos que receber  estas lembranças, evitando a ”mancha  da descortesia”!...

 Um dia, chegou a informação à Escola que o Inspetor ia fazer uma visita de inspecção, já em pleno inverno, e de facto, foi mesmo mas, não chegou  a alcançar a Escola porque o seu  carro ficou atolado de lama no estradão de Asnela e conseguiu, com esforço, fazer a marcha atrás e não teve, futuramente, mais “apetite” em fazer novas inspeções  ao trabalho dos professores…

Em Asnela, terra verdejante e e pacata, estes dois professores, já “calejados em resiliência”, permaneceram vinculados a esta Escola, até ao dia 30 de Setembro de 1980, depois do professor Lima ter feito uma curtíssima” Comissão de Serviço” na Escola de Teixugueiras em 1979.

Asnela, uma aldeia que ficou no coração destes dois jovens – na altura…-professores, apesar das péssimas e desumanas condições  de trabalho aqui descritas contudo, aquela maravilhosa população, tornou a vida mais fácil a estes dois docentes que acabaram de fazer mais uma “Comissão de Serviço” em ambiente de paz,  após terem vindo das ex-colónias de Angola e da Guiné, em  ambientes de guerra.

Da “Escola da Guerra”, a que foram obrigados a frequentar, passaram para a “Escola da Paz” , semeada  com aquilo de que constitui o melhor do mundo, que são as CRIANÇAS…

 

                                        

 

Nota:

Podem acreditar, nesta descrição que é genuinamente verdadeira porque eu, Carlos M. de Lima Barros e o meu amigo, José Abreu do Pilar,  passamos por esta experiência e hoje desfrutamos de uma merecida aposentação, como muitos dos nossos colegas.

Texto dedicado ao professor Artur, já falecido, Delegado Escolar de Cabeceiras de Basto, e a todos os professores que trabalharam com ele na Delegação Escolar.

Uma palavra de apreço para a Autarquia de Cabeceiras de Basto  pelo apoio dado na construção da nova Escola.

 

Carlos Manuel de Lima Barros

Esposende, 26 de Janeiro de 2021

 

 

 















A estacada….

Foi tradição em Esposende, durante longos anos, a utilização da estacada – inúmeras estacas de pinho, espetadas na areia do rio – leito - em forma de  bico, chamado fojo - abrangendo parcialmente   as duas margens do rio Cávado. A rede era presa nas referidas estacas e iam para o fundo, com apoio dos garruchos-cordas presas às estacas-.
Os paus – estacas - eram compradas ou surripiadas pelos pescadores nas bouças e eram espetadas com o auxílio de um maço de madeira. A estacada funcionava em “sociedade” entre os pescadores de Esposende e de Fão, em dias alternados e a rede só podia ser instalada ao nascer do sol e ao pôr-do-sol, tinha de ser retirada, visando a preservação da espécie – ciclóstumes - .

 Os pescadores de Fão - António Borda, Tone Lírio, Arménio, Ascánio…, com os seus barquinhos , colocavam-se  perto do “vértice”-fojo- da estacada e com os seus bicheiros apanhavam as lampreias que se aglomeravam em grande número e os pescadores de Esposende, - Cândido Curico, tio David Loureiro, Santos, João Careca, Zé “Bêbado”, Álvaro e  João  Fá, Serafim,  Guedes…-  procediam da mesma maneira. No dia dezoito de Dezembro era o início da safra da lampreia e terminava a quinze de Abril e nesse período, pescavam-se milhares de lampreias que se vendiam, à unidade ou ao quilo, na época-1960… por vinte  escudos, ou cinquenta escudos conforme a quantidade.
Nos rigores do inverno, com as enxurradas, as redes eram arrastadas e perdiam-se no rio ou no mar, causando prejuízos aos pescadores. No período da estacada era proibido aos pescadores, apanharem lampreias na barra ou no rio, com as fisgas, e tantos os pescadores de Fão, como os de Esposende, mantinha vigilância na barra para impedir que alguém transgredisse, violando, deste modo, o acordo entre os pescadores das duas vilas do nosso concelho. Naturalmente, às escondidas, caçavam-se lampreias porque era muito difícil manter um controlo e vigilância absoluta e, pela “calada da noite”, as lampreias eram fisgadas e só paravam em casa dos transgressores….
O Santos, um jovem pescador astuto, foi para a barra pela tardinha, acompanhado de uns amigos também pescadores e resolveram apanhar umas lampreias,  “à socapa”  e organizaram um plano de actuação para não serem vistos. Com um bicheiro escondido, lá foram eles  para a Foz do nosso rio Cávado, num dia de nevoeiro e não se encontrava ninguém na praia,  pensavam eles!….
No dia anterior, o Milo, mais conhecido, pelo Rosas, tinha apanhado duas lampreias no cais da barra mas, por sorte, não tinha sido descoberto!
Num curto período de tempo, estes aventureiros, apanharam quatro lampreias, muito “taludas” e todos ficaram radiantes até que apareceu uma surpresa! O Tio Guedes que andava na vigilância, no meio do nevoeiro cerrado, viu aqueles “meliantes” com as lampreias e ordenou-lhes que fossem lançadas ao  rio, perante o desespero do Santos que pedia ao Senhor dos Aflitos para que o tio Guedes mudasse de ideias!...
  Caluda, meus vadios, lampreias ao rio e já, senão à “molho” pela certa, ameaçou o Tio Guedes…

As lampreias já condenadas, “viram” uma luz ao fundo do túnel já que o Tio Guedes parecia ser o patrono delas…
Muito desanimado, o Santos teve que lançar as lampreias ao rio e, uma vez libertadas, continuaram a sua “caminhada” provavelmente, a caminho da estacada mas aqui sim, poderiam ser apanhadas porque a tradição assim o permitia…
O Santos olhou para o Álvaro ”Mudo” e para o seu irmão Serafim e disse-lhes:
Ficamos com o dia estragado por causa deste tio Guedes que tem a mania que manda…
Mas quem não arrisca, não petisca, dizia o Santos para os seus amigos, pois amanhã, vamos tentar outra vez, mas só quando o tio Guedes estiver a dormir a sua  soneca lá em casa…
“Pescador de histórias” 

CANTINHO DOS LOBOS DO MAR.

Por Carlos Barros

A conquista espacial….
Em pleno Outono, do ano de mil novecentos e sessenta e quatro, com o carnaval já passado, na Casa de Fotografias Fotobazar, rua Conde de Castro, vendia-se material escolar diverso, e também “as bichinhas” e “bombas de Carnaval” e, passada a época carnavalesca, sobrou um certo arsenal que não se tinha vendido.
No sul de Esposende, a “massa encefálica inteligente” predominava com o José Alberto e o Carlos Miguel a destacarem-se com os seus projectos de submarinos e foguetões, em ensaios constantes, tendo como palco a ribeira ou mesmo a junqueira, com o seu campo de futebol para os nortistas, sulistas, jardinistas e centrais, disputando os seus jogos sempre aguerridos que terminavam em mergulhos no rio Cávado, na companhia das ratazanas, que abundavam e dos cardumes de barbos que proliferavam na junqueira.
O Carlos Miguel, sabia das habilidades do Né Beleza, rebelde nortista, com os seus barquinhos de folheta, a navegarem a vapor, tendo como força motora uma vela de estearina que aquecia um mini recipiente de água que, por sua vez, accionava uma hélice e a embarcação foi sucesso na ribeira, tendo como palco as águas do Cávado.
Não querendo ficar atrás, na arte da inovação, o Carlos Miguel, recolheu diverso material - canudos grossos das fazendas/tecidos do senhor Sá, cartão, tábuas de madeira das caixas de sabão rosa e amarelo do António do Sul, arames, embalagens da Maizena,…- e resolveu fazer um foguetão. Na sua oficina improvisada de sua casa, o foguetão começou a tomar forma e com a pólvora, tirada das bombas de carnaval da loja, colocou-a na cauda do foguetão, dentro do espesso canudo de cartão prensado.
A rapaziada do norte e do sul souberam desta iniciativa e durante dias rondaram a casa do Carlos Miguel, junto ao grémio da Lavoura, para observarem o famoso invento mas, este prevenido, não se deixou surpreender e guardou o foguetão a “sete chaves” num barracão do quintal.
Numa tarde de sábado, o inventor mandou os cicerones avisarem os ribeirenses que o foguetão iria ser lançado na ribeira, junto ao cais do sul e, pelas dezoito horas, com o sol já a esconder-se, o foguetão foi levado para a “rampa de lançamento” na ribeira e a “cambada” aglomerou-se em grande número.
Na ribeira, hoje Parque Radical, jogava-se futebol a “croa”, com o Nibra, Tachi, Luisinho, Arrebita, Concha, Renato, Augusto Piolho e da Galga, Casimiro “Tri Tri”, Zé Conainas, Paulo Gatinho, Aicha, Santos, Rogério Rites, Airinhos, Fidós, Miquelinos, Mendanhas, em plena acção, correndo atrás da “redondinha”… Os mais velhos, Quim Tripas, Batista, Fernando Quintino, os Rosários-Mário e Fernando- Pompeu andavam no Campo do Quim Serralheiro e nas redondezas do Matadouro, fazendo “das suas”…
O foguetão, foi conduzido, para a ribeira num carrinho de mão, emprestado pela Maria Talhó, sendo colocado na rampa do cais. O Carlos Miguel, autoproclamado cientista, entusiasmado pela numerosa assistência, pegou num isqueiro que tinha saído nos cromos dos papeizinhos, na Loja do António da Lucádia e pegou fogo à pólvora do foguetão e o inesperado aconteceu:
Com a propulsão da combustão, o foguetão subiu três metros e explodiu, mergulhando “de bico” nas águas do Cávado, fumegando por todo o lado com o Carlos Miguel, envergonhado pelo insucesso da sua invenção. Todos os ribeirenses presentes começaram aos saltos, numa larga risota e, sobre a superfície das serenas águas do Cávado, os destroços do foguetão foram pela maré, em direcção à foz perdendo-se no mar, já que a maré estava na vazante. Alguns destes destroços, cartão molhado e arames, ficaram nas redes da lampreia do senhor David que barafustou contra aquele “entulho”, sem saber da sua proveniência.
“Tanto trabalho para quê, queixava-se cabisbaixo o Carlos Miguel, com o seu irmão ao lado, desanimado , perante tamanho desastre!...
Eu pensava que o foguetão ia à lua, dizia o João Arrebita para o tristonho Carlos Miguel que se prestava para abandonar a rampa, uma vez que a negritude da noite avisava os ribeirenses de que estava na hora de irem para casa.
No dia seguinte, na Fotobazar, o senhor Gomes, funcionário deste estabelecimento, perguntou ao Carlos Miguel se o foguetão já tinha chegado à lua e este, num tom de voz de desânimo e de revolta, respondeu:
-Ó senhor Gomes não me chateie, pois aquilo foi um fiasco….
A Dona Olmerinda Losa, que acabara de chegar à loja, ouviu parte da conversa e perguntou o que se tinha passado!
O senhor Gomes, sempre expedito, disse-lhe que não tinha havido nada de especial e o Carlos Miguel, sentiu-se aliviado porque se a mãe soubesse do desfalque que fizera nas bombinhas de Carnaval, a tragédia seria maior…
“Pescador de histórias”
Entrevista com o senhor António Silva Gomes
No Posto de Turismo de Esposende-CITE-
No dia 20-10-2015
Pelas dez horas e trinta minutos Carlos Manuel de Lima Barros

CANTINHO DOS LOBOS DO MAR
por Carlos Barros

  “Tiro aos vidros” 

   Esposende despertou pela manhã,  com os sinos da Matriz a dar as sete horas matinais.
  Já em pleno julho, as crianças fora da escola, gozavam as suas  férias tão desejadas para se deleitarem na ribeira com os seus varais, a sua relva despenteada e os juncos abanando como que acenando à miudagem para os levarem até às pocinhas do rio para  se encherem de  lagostas para o repasto matinal.
   Na rua Conde de Agrolongo, o Quim Tripas-Joaquim Eiras Gonçalves- já afinava a afunga e enchia os bolsos de godos, apanhados nos areais da praia ou nos montes de areia das casas em construção.
   A Rua 31 de Janeiro, o João Papinhas-João Adriano-  fugia pela porta fora, à socapa da mãe porque tinha combinado um encontro com o Quim Tripas, no matadouro para estudarem mais uma das suas  aventuras: tiro aos vidros…
  Os dois comparsas, observaram as janelas do matadouro, sempre atentos ao Zé da Vila que guardava as instalações, e começaram os preparativos, recheando os bolsos de godos e  reforçaram a pelica das afungas, feitas, com paciência por estes dois rapazinhos irreverentes, com as borrachas de “cambras de ar” dadas pelo senhor António Fandino que apreciava muito estes dois “trutas irreverentes”.
   Ao passarem pela tardinha, na Rua Direita, pela garagem do Fandino, estes dois aventureiros iam em corrida acelerada, olhando para trás…
Rapazes, o que é que vocês vão fazer com as afungas,  gritou  o senhor António?
Já sei que vão para a vadiagem seus malandros, concluiu o Fandino para o João e o Quim Tripas que corriam como galgos, atrás das lebres…
 Pela tardinha, os nossos heróis aproximaram-se do muro do matadouro, tomando posição de disparo e o desafio era fazer um buraquinho redondo, sem partir o vidro.
As primeiras “afungadas” do Quim Tripas partiram logo dois vidros que se estilhaçaram no chão.
  O João Papinhas não quis ficar atrás e com dois disparos, mais dois vidros partidos, perante o delírio do Quim Tripas que abanava a cabeça de contentamento...
Os melros cantavam nas árvores do campo do serralheiro, anunciando a noite que se aproximava vertiginosamente, com o sol a dizer o “último adeus” nos limites da restinga, o grande braço de areia  que aconchega as águas do nosso rio Cávado e do gigante Oceano Atlântico.
   Seguiram-se mais disparos e passados minutos, as janelas tinham quase todos os vidros partidos e os dois “mariolas”, regressaram ao Largo dos Peixinhos, com a missão cumprida,  para lavar as mãos no lago e descansarem um pouco  nos bancos ripados avermelhados do  jardim.
 No dia seguinte, o Zé da Vila deparou-se com o desastre no matadouro e começou as suas investigações para apanhar os “criminosos”, falando com a vizinhança da central.
 O Virgílio, “O parafuso”  que estava nas redondezas do matadouro tinha assistido às fisgadas do Quim e do João e denunciou-os à GNR e os autores da proeza e o denunciante foram chamados ao posto, no dia seguinte, para prestarem declarações.
  O cabo da GNR olhou para o trio e perguntou quem é que tinha partido os vidros do matadouro sob  gestos ameaçador do agente Oliveira.
  O Virgílio respondeu de imediato que tinha sido os seus dois amigos e estes  confessaram o crime mas, a “coisa” não ficou por ali…
O João Papinhas disse ao GNR que o Virgílio também tinha partido os vidros, e o Quim Tripas confirmou a denúncia e logo aí o “caldo ficou entornado…”!
  Meus amigos, para não apanharem umas vergastadas, os vossos pais irão pagar os estragos e  vão ser informados disto.
   O Virgílio ao sair do posto,  sacudiu  os calções de ganga cheios de serrim, perante o olhar ameaçador do João Papinhas e do Quim Tripas, e saiu furioso em direção a casa, dando a conhecer ao pai do acontecimento.
   O Virgílio, de recompensa, ainda levou umas “lostras” do pai que não acreditou na inocência do filho e de castigo foi para a carpintaria ajudar o pai e o Carlos Gaspar que estava fazer umas  cadeiras de cozinha.
   O Quim Tripas, olhou para o João Papinhas e disse-lhe:
  Por ele nos ter denunciado, o  “Parafuso” pagou as “favas ao dono” e isto não vai ficar por aqui…
 Os  vidros foram colocados e pagos, com sacrifício, pela mãe do Papinhas, Amélia  contudo a mãe do  Quim Tripas não tinha ”posses” para pagar as despesas e, como castigo, o Tripas  passou alguns dias a engraxar os “ plainitos” dos GNRs .O  pai do Virgílio colocou os vidros todos nas janelas, do matadouro que ficou com  melhor apresentação embora, não por muito tempo porque estes aventureiros mais cedo ou mais tarde, iriam fazer novos tiros ao alvo…
 O Quim Tripas, no dia seguinte, partiu para novas aventuras e deslocou-se para a junqueira para apanhar cobras de água para as  vender na Farmácia Monteiro por cinco croas cada uma, e logo a pronto pagamento…
Com os agradecimentos da Bertinha e do senhor Monteiro, sempre simpáticos e solidários, ao Quim Tripas, pela caçada dos ofídios, estes foram colocados em frascos para “experiências” e como “mesinhas”, contra o reumatismo e outras maleitas físicas..
  O Quim Tripas deu algum desse dinheirinho à sua mãe e irmãs para reforço dos almoços e jantares já que os tempos eram de “míngua”…
   Com uns trocos, o Quim Tripas, sempre descalço, foi à Havaneza comer uma sande e um galão, sendo servido, pelo sempre desconfiado senhor Franquelim designado pela rapaziada da ribeira por “calcinhas”…
  O Quim Tripas teve um lanche de “rico” e depois do repasto, pegou numa cobra que tinha numa caixa de fósforos e soltou-a e alguns clientes começaram a fugir do café, derrubando algumas cadeiras  e desviando as pesadas mesas da Havaneza, perante o desespero do senhor Franquelim que  se refugiou  dentro do balcão.
   O senhor Zé Praia, com os seus graduados óculos, que estava a jogar às Damas com o senhor Carvalho, relojoeiro, nem se mexeu do lugar, tal era a concentração ao jogo.
 O Quim Tripas pegou na cobra que serpenteava pelo chão do café, meteu-a na caixa de amorfos “Quinas” e saiu em grande correria pela porta fora porque temia que uma vassoura voasse em sua direção!
  Estava consumada mais uma das  aventuras do Quim Tripas, menino traquina, simpático, aventureiro, irreverente, ágil como um leopardo, corajoso como um felino, e que conseguia sobreviver nesses  tempos muito difíceis. Em Esposende, proliferavam famílias muito carenciadas, onde a “fome” batia à maioria das famílias esposendenses.
   Muitas crianças só usavam sapatos aos domingos e nos resto da semana, andavam descalços calcorreando ruas poeirentas e empedradas e caminhos de terra batida.
   O nosso Quim Tripas tinha o “seu Mundo de Aventuras”, fazendo relembrar os livrinhos  que se vendiam na Primorosa e que tinham esse mesmo nome: MUNDO DE AVENTURAS.
   O seu preço era de dois escudos mas, a criançada limitava-se a olhar para eles, colocados naquela montra da Primorosa mas, os dois escudos eram melhor empregues  na compra de uma sêmea na Padaria beirão e de um naco de marmelada comprada na Nazaré  e no António do Sul ou mesmo um pirolito ou laranjada “Canada Dry” que se vendiam na Lucas.
  O Quim Tripas era mesmo assim, um menino, agora distinto e respeitável homem, irreverente e sagaz, um lutador pela aventura e que o “Pescador de histórias” se orgulha em recordar.


  Uma viagem atribulada…


          A motora Filomena Antonieta, foi  a primeira motora que veio para Esposende, no ano de mil novecentos e sessenta e dois, com uma tripulação de pescadores muito trabalhadores, divertidos e “vinhaça” que se aproximasse deles, era “vinho evaporado”, num abrir e fechar de olhos…
         O João Careca era o mestre da Filomena Antonieta, pescador experimentado e muito sereno, sendo a tripulação constituída pelos esposendenses, Quico da Inocência, irmão do João Careca, Morrossol, com a sua gravata garrida e elástica, o Tone Pirata, Anselmo Saganito, A. Guimarães, Alfredo Muchacho, e o grande “ilusionista” Milo, também alcunhado de “Rosas”, antigo guarda-redes do Leixões.
          A Filomena Antonieta, com os seus treze metros de comprimento era palco de muito trabalho e de diversões com o Alfredo Muchacho, sempre  a comandar as “tropas” com o seu excelente espírito de humor e de oportunas malandrices.
          Era habitual, durante o ano, separar “meia parte” do pescado da motora, para custear as despesas para alguns passeios a Lisboa-Mafra-Nazaré…- e a  outros locais ,(volta ao Minho…) para que a “companha” se distraísse  um pouco, fazendo descansar o corpo e espírito, “corroído” pelas longas e cansativas saídas para o mar.
        No dia vinte e dois de outubro, de mil novecentos e sessenta e sete, o João Careca organizou um passeio a Lisboa, com passagem por Mafra e Nazaré. Após umas passeatas pelos cafés/tascas no campo das cebolas , foram todos pernoitar à Pensão Varandas , curtir um pouco das “copaças” com uns tremoços e amendoins, de sabor bolorento, a acompanhar…
       O Morrossol, sempre aperaltado, tinha pedido, ao João Careca, no primeiro dia na capital, se o autorizava a ir ter com uma tia e prima na baixa lisboeta e o mestre, começou a esfregar a boina desconfiado mas, lá lhe deu autorização desde que, no outro dia, estivesse junto à Pensão Varandas para a viagem de regresso.
         O Tone Pirata acenava para o senhor João para não o deixá ir porque nunca mais regressaria, lembrando-se das “partidas”-aventuras-  anteriores do Morrossol.
           O Tio Alfredo, com ar tristonho, sentado num muro, junto à Pensão, desabafou:
- Adeus amigo Morrossol, nunca mais te vejo!...Vai “alma perdida”….
          No dia seguinte, quando os “turistas” iam partir de Lisboa, lá estava o Morrossol, com dois grandes embrulhos, com  frascos de perfumes e roupa  branquinha, mesmo a seu gosto …
         O Tio Alfredo, não resistiu, abeirou-se do seu amigo e começou a vasculhar os sacos,  procurando alguma garrafinha de tinto ou uma cerveja perdida mas, infelizmente, nada disso existia, perante o desespero do Tone Pirata e do Tio Aníbal Mó que tinham a garganta seca!
       Já em viagem de regresso, a velha e ferrugenta carrinha do Aníbal Mó, sócio da Motora Maria Antonieta, que transportava estes pescadores de Esposende, numa curva teve um pequeno despiste e avariou-se e gerou-se algum  pânico entre  os “turistas”.
        O Milo foi projectado pela porta fora e caiu desamparado, com uma lata de óleo,  rasgando  as calças, caindo num valado, cheio de urtigas. Esteve a coçar-se durante muito tempo, com comichão,  com o Tio Alfredo Muchacho a rir-se perdidamente. O Milo, assustado,  estava vermelho de tanto se esfregar.
           O Morrossol, dentro da carrinha,  gritou:
- Irmãos estamos perdidos, vamos a pé para Esposende por causa desta carripana maldita!
       Todos saíram da carrinha, e o Anselmo, com o susto que apanhou,  cada vez gaguejava mais, apesar do apoio do Tone Pirata que só pedia para pararem na próxima tasca para  beber uns valentes “ganázios”- malguinhas-  de vinho.
         O Alfredo Muchacho, sempre na borga, pôs-se ao volante, sem saber conduzir e destravou a carripana que começou a deslizar e só parou junto a um muro, coberto de  musgo e trepadeiras, que  amorteceu o choque.
            Entretanto, a porta da carrinha, que estava segura com cordas e arames, soltou-se e foi projectada, deslizando sobre um extenso relvado, junto a um barracão de tijolo que se encontrava abandonado apenas, dois gatos vadios saltavam entre ervas verdejantes e dois tijolos abandonados...
            O Milo que não bebia bebidas alcoólicas e gritava a “sete foles”:
-Quero um pirolito, estou com uma secura!
          Entretanto a carrinha, com O Aníbal Mó ao volante, já bem entornado, começou a trabalhar e logo a companha enfiou-se dentro da viatura  a caminho da Nazaré .
           O Morrossol, de sapato branco, gravata de elástico e casaco de xadrez, desviava-se do Alfredo Muchacho porque este estava sempre a puxar pela gravata, esticando-a e largando-a, aleijando o “caroço” ao  infortunado Morrossol.
            O Quico desesperado, olhava para o irmão João Careca e perguntava-lhe o que iria fazer a estes “bebedolas” e, com a sua calma, o mestre olhou para ele e disse-lhe:
- Vamos já para Esposende, e vamos deixá-los na ribeira porque estou farto de aturar esta cambada, lamentava o João Careca.
           A carrinha em velocidade de cruzeiro, chegou a Esposende pela já madrugada, e parou na ribeira, junto ao posto da Alfândega, com a intenção de os deixar lá, mas, todos estavam despertos e saíram da viatura, cambaleando, em direcção às suas casas onde as mulheres os esperavam com o caldo de farinha à mesa e uma postinha de raia ou bacalhau frito.
           Foi um passeio atribulado mas, muito animado apesar das peripécias que tinham acontecido num passeio que jamais poderia ser calmo porque o Tio Alfredo Muchacho, agitava aqueles jovens e alegres pescadores que, apesar das brincadeiras, palhaçadas e maroteiras, eram sempre amigos e bastante unidos na amizade e no trabalho.
“Pescador de histórias”

O Toninho pedinchão”

O Toninho “Anão” (António José Barros Neto) percorria, numa fase inicial, Esposende lés-a-lés, passando a “pente fino”, todos os cafés das redondezas como a Havaneza, Nélia e Primorosa e alguns tascos onde apareciam os “lavradores ricos” das aldeias. O Toninho sempre na sua missão de peditório, ia pedindo a esmolinha da ordem, com uma “carinha de meter dó” para melhor convencer os incautos.
O Toninho metia-se nas camionetas da “Viúva”- Auto da Viação do Minho, Ldª- ou do Linhares- Caetano Cascão Linhares- e pedia dinheiro aos passageiros ou dirigia-se para os locais mais “lucrativos”, onde era pouco conhecido, como em Viana do Castelo e Barcelos, aqui às quintas-feiras, dias de feira. Chegou-se a aventurar-se em incursões a Braga mas, esta cidade era muito confusa para o nosso amigo Toninho, como uma vez me confessou.
Um dia, ele estava na mercearia/armazém e tasca do Abílio Coutinho, bebendo uma malguinha muito à pressa, não vá o Carlinhos aparecer, que sempre lhe negava o vinho, e meteu-se à socapa, dentro da Camioneta da “Viúva” que acabara de chegar para entregar as encomendas no Coutinho, que era o local de recepção das mesmas. O Lourenço com as suas “lunetas” já carcomidas pelo tempo, era o principal distribuidor dessas encomendas: Farmácias Monteiro e Gomes…
Durante a viagem para Viana do Castelo, o Toninho, que era muito pequenino, meteu-se debaixo de um banco e permaneceu escondido durante toda o percurso, sob a cumplicidade de alguns passageiros que o protegeram, já que o conheciam bem, doutras “aventuras peditórias”.
A camioneta mal chegou a Viana do Castelo, o Toninho saiu “disparado” do banco e foi em direcção à marginal da cidade para percorrer os cafés no seu “afã” de pedincha,  visitando as  “capelas do Loureiro”- tascas- que lhe iam aparecendo pela frente. 
No campo da feira, entrou numa taberna e, com os bolsos recheados, mandou vir umas iscas de bacalhau frito, dois trigos e a habitual tigela de vinho tinto carrascão, que lhe soube pela vida. Naturalmente, não foi apenas uma tigela de vinho, outras se  lhe seguiram…
O Toninho dirigiu-se pacatamente e a deambular, para o escritório das camionetas da “Viúva” e, com tanto azar, perdeu-a e não havia mais nenhum autocarro para Esposende, perante o desespero do Toninho que esbracejava e protestava contra tudo e contra todos….
Bem, só tenho uma solução, murmurava o nosso amigo para os seus “botões”!... O Toninho foi para o cais de Viana para arranjar boleia numa motora de Esposende e, por mero acaso, o Tio David estava a chegar do mar, com a sua Cláudia Cristina, motora de quatro cilindros com um potente motor dinamarquês “Buick”, com a matrícula “ES 86 C”. O senhor David, olhou para o paredão e disse para os seus tripulantes:
-Olha quem está ali, é o Toninho Anão! Já deve estar “com os copos”….
Toninho, o que queres, perguntou o mestre David, ao nosso “artista”, perante os olhares do Milinho e do Tone Fifas.
Quero boleia para Esposende senhor David, pediu o Toninho choramingando…
O mestre olhou para a tripulação e meditou, numa  rápida reflexão.
É uma grande responsabilidade levar o Toninho naquele estado e se cai ao mar, estamos perdidos, confessou o senhor David para os seus tripulantes ….O Alfredo Morrossol levantou o braço e disse:
Eu não quero problemas porque o Anão não é de confiar….
O Tião Saganito, o Agostinho e o Milo acenaram para o senhor David para deixar entrar o Toninho para a motora.
Vamos arriscar, disse o Milo, ameaçando o Toninho com uns “caroques”….
Toninho, entra mas vais amarrado ao alador para não caires ao mar porque a mar está “alto” e não quero arriscar, disse o  mestre David ao Toninho que cambaleava no convés, amarrado à casa do leme…
Ó Milo, guarda-me estas moedas porque tenho o bolso roto, pediu o Toninho ao seu amigo! O mestre David que estava junto a uma caixa de lagostas e lavagantes, olhou de lado para o Toninho e disse-lhe:
Seu malandro, nem em mim confias precisavas é que te pusesse ao mar!
Passadas umas horas, depois de descarregado o peixe para a lota, a motora partiu com toda a sua tripulação para Esposende e durante a viagem o Toninho dormiu profundamente, nem a agitação forte das ondas, o acordava.
A motora Claúdia Cristina “aportou” junto ao Salva-vidas, onde estavam os irmãos Miquelinos a conversar sobre o jogo Norte-Sul em que os Sulistas , tinha vencido por quatro bolas a uma em que o árbitro “Touca Branca” fez uma arbitragem polémica, como  foi sempre do seu timbre….
O Toninho foi desapertado das cordas do alador pelo Alfredo Morrossol e levado ao colo pelo Tone Fifas, para o cais e o Milo  entregou-lhe todo o dinheiro do peditório do dia.
Quando menos se fazia esperar, o Toninho começou a injuriar o senhor David e toda a tripulação, afirmando que lhe tinham roubado o dinheiro, numa gritaria que ecoou ao longo da Ribeira até à Alfandega Marítima de Esposende, onde se encontravam o senhor Torres e o Lima, duas autoridades marítimas, -guardas-  a conversarem à porta da Delegação,  sobre os negócios da  Teresa do Castelo que nesse dia, tinha comprado muitos quilos de lavagantes e lagostas que foram pesados na loja do Abílio Coutinho pelo Carlinhos que recebeu, como oferta, um pequeno lavagante, que mais tarde, foi cozido pela Tia Alice  na máquina a petróleo e comido à mesa pelo Carlinhos e o “cheiro” ficou para os tios…. O tamanho do marisco não dava para mais!
A Teresa do Castelo, com o seu poderoso porte atlético, e com as suas pulseiras e cordões de oiro a ornamentar os seus pulsos e pescoço, agradeceu à tia Alice e ao Carlinhos pela pesagem e na sua carrinha, com o marido a conduzir, foi em direcção a Viana do Castelo para deixar o marisco aos seus clientes.
No cais pairava a confusão com a gritaria do Toninho que não parava de protestar, chegando mesmo a pegar em “pilado” que estava num monte, junto ao paredão, atirando-o para dentro da motora.
Seu vadio, seu corrécio, para a próxima vez, anda-me pedir boleia que vais ver, ameaçou o mestre David ao Toninho que foi  abandonando a ribeira,  fazendo-lhe caretas provocadoras.
O Toninho regressou, com sacrifício, à sua modesta residência, no bairro das Casas de S. Vicente de Paulo e mal entrou em casa, pelo quintal, em passada “sorrateira”, guardou o dinheiro debaixo do colchão de colmo, num dos quartos de dormir  “colectivos” e  “caiu como um tordo”, ficando a dormir  “até às tantas”…..
No dia seguinte, o Toninho “Anão” já estava em forma e pelas onze da manhã, entrou na Nélia e começou a pedir cinco croas ao Dr. Francisco Marques que estava a engraxar os sapatos no senhor Guimarães, e a outros clientes de Barcelos e de Braga mas, teve que acelerar porque o senhor João Tamanqueiro, empregado de mesa,  tinha-o detectado e a única solução era a fuga para poupar as orelhas….
O Oliveira e o Benjamim “Come croas”, empregados da Nélia, estavam a servir noutra zona do café e não ameaçavam perigo para o Toninho. O Adriano, filho do senhor Adelino das camionetes do Linhares, no Snack-Bar, chamou pelo Toninho, deu-lhe dois rissóis de camarão e de bacalhau do dia anterior, na condição do Toninho sair dalí, porque parecia mal pedir…
Com os rissóis na mão o Toninho desapareceu e foi “atacar” na Havaneza mas, o Jerónimo não lhe deu hipóteses e só lhe restou “imigrar” para uma nova viagem, agora para Barcelos, sempre clandestinamente, sem pagar bilhete porque o Toninho tinha sempre dinheiro, mas quando era preciso pagar algo, ele “nunca tinha dinheiro”.
Precisamente no dia doze de maio de mil novecentos e oitenta e cinco, numa tarde trágica, o nosso amigo caiu de uma “marquise”, no Bairro de Sucupira e “deixou-nos” para sempre um acontecimento que entristeceu todos os esposendenses e a família em particular. Todos nós reconhecemos que o Toninho fazia muita falta aos Esposendenses porque era uma pessoa especial e “castiça”  e pessoalmente, nunca aquele rapazinho, foi mal educado para o “BÓIAS”, e eu que tive muitos e muitos contactos com este amiguinho no café, no armazém-mercearia-tasco do meu Tio Abílio Curvão ou mesmo em plena via pública!

Uma coisa é certa: nunca lhe servi uma malga de vinho ao Toninho, apesar de me pedir muitas vezes! Fui sempre seu defensor pelas boas causas e cheguei mesmo a dar-lhe algumas explicações, quando estava na Escola Primária, tentando que ele regressasse aos estudos mas, perdi e fui derrotado pela teimosia do Toninho porque a Escola para ele, não era vida
Carlos Barros
“Pescador de histórias”




“A secura do Geno…”
O Manuel António Sousa Cruz, mais conhecido pelo Taxi, batizado pelo ilustre Zé Feliz, nas suas vivências na ribeira, no “estádio da Faustina” foi um jogador especial,  tendo jogado no ESC, Marinhas, Vila Chã , Fão e no Norte-Sul . A  sua velocidade ultrapassava a da bola, chegando mesmo, a desaparecer do campo, num jogo com o Ronfe porque ficou “mergulhado” numa valeta, sendo pescado pelos calções pelos colegas, depois do jogo ter sido interrompido pelo árbitro, que ficou espantado pelo desaparecimento inesperado do craque Taxi.
Atualmente o nosso amigo Nelinho pertence ao “Danças e Cantares das Marinhas”, tendo-se deslocado, em digressão artística, cinco vezes à França e a vários pontos do País, chegando a atuar com o seu grupo de Folclore,  no Algarve.
Para além de jogador de futebol, o Taxi foi pescador, com cédula Marítima, passada pelo tenente Tavares e pelo Arlindo da Delegação Marítima de Esposende, tendo feito uma prova e mergulho e natação, sendo aprovado sem entrar no rio, apenas molhando a cabeça, tendo convencido as autoridades marítimas da época.         O Taxi era um estratega peculiar e na ribeira, nos jogos de futebol Norte-Sul, onde se jogava a cinco croas, o nosso “mestre” armava confusão e ficava com o dinheiro ou escondia-o no capão da bola de futebol do Zé Pancas.
       O Taxi, como no futebol, era “ave” de arribação e, como pescador,  passou por várias motoras: Cruzeiro do Norte-João Paquete-, Torrão-Berta Bicheza-, Mar obedece a Jesus –Quico da Inocência- e 1º de Abril – Zé Bebado-,”Senhora do Triunfo-  Marco Filipe-motora Nova do Zé Bêbado-, Pérola de Esposende- “Rabo do Chico”-, Senhora da Saúde-Manuel Reis-, Pai Tirano-Tio Armando- e Galo Negro-Tone Galo-.
     O Taxi esteve, como pescador, em Sagres, Sines. S. M. Porto, Arrifana, Vila Nova de Mil Fontes, Viana do Castelo e, naturalmente, em Esposende, conhecendo meio mundo e fez rir muita gente, com o seu “singular sotaque”.
      O Geno fez parte da tripulação do Taxi e, numa bela tarde, com o sol a apertar, pelas quinze e trinta da tarde, a secura invadiu os tripulantes da motora e não havia cerveja ou garrafões a bordo da embarcação porque rapidamente desapareciam com tantos discípulos do Baco, deus do vinho, existentes na motora.
        Atita, ainda te lembras quando andavas na motora do Zé Bêbado e, ao alar os “tróis”, com um grande congro preso, pegaste no bicheiro e fisgaste a madeira da borda da motora, perguntou o Taxi ?
       Lembro-me, lembro-me bem, tu precisavas era de uns valentes cachaços nesse lombo ameaçou o Atita que não gostou nada da conversa.
Entretando na motora, ouviu-se uma voz, de aflição:
Estou  com a garganta seca, gritava, com rouquidão, o Geno para os seus amigos, pedindo vinhaça…
O Taxi, tinha uma garrafa de cerveja cristal, no porão e foi buscá-la para  matar a secura ao velho e amigo  Geno que continuava a  pedir  copaça.
        Geno, meu irmão, tenho aqui uma garrafa de cerveja que o meu irmão Pexixola me deu, disse o Taxi todo solidário.
        O Geno mal pegou na garrafa de cerveja, meteu-a à boca e começou a gritar:
- Eu morro, eu morro,  estou a arder por dentro, socorro, socorro!...
          O Taxi pensava que era falta de oxigénio e pegou no extintor e despejou-o na cara do infortunado Geno, para agravar ainda mais, a situação do “desgraçado”…
O Geno, então é que começou a aumentar, em refrão, a gritaria, numa explosão de aflição.
O mestre da motora ao ouvir a gritaria, saiu da cabine, escorregou nos langanhos das  raia no convés, contudo conseguiu segurar-se e deparou-se  com o Geno quase desmaiado, espumando-se pelos cantos da boca.
Taxi, o que deste a beber ao Geno, perguntou o mestre da motora ao Taxi.
 Dei  “ceveja” comprada no tasco do tio Feliz, que o meu irmão Pexixola me deu, e pus “ogénio” na boca dele, respondeu convictamente e nervosamente o Taxi.
        Desgraçado, vou-te matar tu deste ao homem petróleo que estava na garrafa, no porão que era para pôr nas lanternas…
O quê, dei “pitólio” ao Geno, questionou o Taxi tremendo por alguma bordoada que cairia no “lombo”…
       O mestre da motora atracou a motora ao cais e o Geno, fervendo a “muitos graus” e trasando a petróleo, e com a cara toda branca da espuma do extintor,  foi transportado pelos colegas para o hospital de Viana do Castelo onde ficou internado durante algumas horas, tendo alta no dia seguinte.
O Taxi andou fugido por umas horas da tripulação da motora mas, depressa regressou porque tinha uma saída para o mar, onde iriam largar redes ao camarão e a calma regressou ao barco que continuava a cheirar a petróleo e, graças a uma nortada de sudeste que se levantou, o cheiro foi varrido e a “ecologia” pairou na motora.

“Os irões da junqueira”

  O Paulo Fá, ainda criança, com os seus nove anos, comandou uma equipa de “marmanjos” para apanharem irões, perto do matadouro e da junqueira. Estavam grossos, confessou ele aos seus amigos.
  Era preciso dinheiro para comprar sêmea, “trigos”, e umas croas  para se jogar futebol na ribeira a dinheiro e um saco de irões, vendidos às peixeiras era oportunidade a não desperdiçar.
  Pegaram em “varapaus” e lá foi a criançada, comandada pelo Paulo do Fá para o rio e começaram, a apanhar irões  e,  passado pouco tempo,  a saca estava cheia, com as enguias a rabiarem dentro da sacola.
   O “maralhal”, todo entusiasmado, lá foi vender as “enguias” a casa da tia Inocência.
   Todos contentes, estas crianças que tinham fugido à escola, nessa bela tarde de Verão, bateram à porta da peixeira, todos sorridentes pela boa “safra” piscatória.
    Entrem meninos, disse a tia Inocência, ponham aqui os irões no chão-soalho carunchoso- para serem contados que eu dou-vos cinco croas, uma pequena “fortuna “ para essa época, ano de mil novecentos e sessenta e um.
    Os irões foram lançados sobre o soalho, para serem contabilizados mas,   começaram o “bufar” e a peixeira gritou, saltando aflita:
-Desgraçados, vocês apanharam mas foram cobras, respondeu a mulher assustada.
     Entretanto, a casa encheu-se de cobras por todo o lado e até subiram para a cama do quarto do Zé, filho da peixeira.
     Estava o caos semeado naquela modesta casa e a rapaziada começou a fugir pela porta fora e só pararam na ribeira, deixando o saco dos irões para trás.
      A tia Inocência, com ajuda dos filhos, conseguiu, com paus e uma vassoura, expulsar e matar a maioria das cobras outras porém, conseguiram fugir para o quintal do “Zé Tolo”,( filho do Albano Laca) e do Abílio Coutinho, para o meio do seu  tomatal.
      O Paulo Fá olhou para o Manel e Tonó e desabafou: 
- Tão cedo não quero ir aos irões porque aqueles bufavam como cobras!...


História contada pelo Paulo do Fá, no dia 21 de janeiro de 2013-01-21
 junto à lota-Sul- de Esposende, na presença do José Manuel e esposa Adelaide, Manel  Nibra e  Ainho.

Carlos Barros
21/1/2013

Os dois esfomeados...
A motora “Mar obedece a Jesus”, com a sua tripulação- Rogério, Tone Passarinho, Agostinho, Tone Paquete, “Arrebita” e Quico - o mestre da motora- encontrava-se em Sagres, no ano de mil novecentos e oitenta e seis, na sua faina piscatória.
Uns jovens ingleses, dois rapazes e uma rapariga, encontravam-se a passear numa avenida, quando reconheceram os pescadores de Esposende, sempre barulhentos, que tinham ido beber umas “taças” na taberna, e abeiraram-se deles:
- Amigos, gostávamos de ir ao mar, podemos ir?
-O Tinocas prontificou-se a pedir ao Quico, que estava ao seu lado, se poderia levar os banhistas , que estavam numa colónia de férias , ao mar.
-O Quico, sempre disponível, acedeu ao seu pedido, combinando com os jovens estrangeiros, a hora da partida, para o dia seguinte.
A motora partiu pelas cinco horas da manhã, com os jovens no convés, descontraídos junto à casa do leme, onde o Quico, com a sua experiência e saber, tripulava a motora em direcção ao mar, para alar as redes. Os tripulantes conversavam com o “Arrebita” que dava recomendações aos jovens para não enjoarem. Percorridas umas milhas, o trio inglês já estavam com ar de enjoados mas, sempre sorridentes.
Chegados ao local, em pleno mar, os pescadores começaram a alar as redes, com o Pezinho mais a observar que a trabalhar…Após umas horas de “alanço” a motora encheu-se de tamboris, lagostas, peixes-galos, salmonetes , sargos, douradas e de outras variedades de peixes.
Meu Deus, tanto tamboril, gritava o Agostinho para o Tone Paquete, que era o cozinheiro no mar, enquanto que o Agostinho, era mestre de “culinária” mas, em terra.
O Tone Paquete olhou para o Quico, mestre sempre atento às agruras do mar, decidiu que o almoço seria arroz de tamboril para toda a “companha” e o Arrebita e o Tone Passarinho, esfregaram logo as mãos de contentes porque era o prato favorito deles.… O Tone pegou em três grandes tamboris, levou-os para a improvisada cozinha no convés, preparou-os e fez uma “arrozada” de tamboril cujo cheiro se espalhou pela motora, perante a alegria dos pescadores, já que a “barriga batia horas”…
O Rogério Chana, olhou para o Paquete e disse-lhe:
Tone, estes “estranjas” vão comer connosco?
Claro que sim, respondeu prontamente o Tone, que mexia o arroz que ia dançando ao ritmo das ondulações do mar.
Os ingleses foram servidos com o saboroso prato e começaram a comer, deliciando-se com o saboroso arroz.
Tone, eles vão comer mais arroz? Olha que eu e o Pezinho ainda não comemos, alertou o Rogério!...
Não faz mal que eles não comem mais mas, é melhor perguntares outra vez, respondeu o Tone Paquete.
Ò juventude “tanque iu” (Thank you) querem mais um prato perguntou o Chana!
Yes, more, more… !
Tone, “Yes” é sim , em português?
Seu “morcão” não sabes que é, respondeu o Tone ao Rogério…
Os jovens comeram mais uma pratada de arroz de tamboril, perante o desespero do Pezinho e do Chana que estavam a ver o “fundo da panela”….
E agora o que vamos comer Tone, pois estes “desgraçados” comeram-nos o arroz todo?
O Arrebita com a barriga cheia, já dormia na proa, ressonando ! Até as gaivotas, que estavam a comer tripas de tamboril, se assustaram…
O Tone Paquete, com a panela vazia, atirou-a pelo convés que deslizou até à proa, quase atingindo o Arrebita que continuava a dormir profundamente.
O Quico perante tanta confusão e desespero dos “esfomeados” olhou, da casa do leme, para os dois amigos que continuavam a resmungar e disse-lhes:
Pezinho e Rogério, em terra vamos comer ao restaurante porque os ingleses pagam…
O Tone Passarinho, o Agostinho, o “Arrebita” olharam uns para os outros e nem queriam acreditar! Vão para o restaurante encher o “bandulho” e nós aqui, lastimaram todos eles!...
O Quico apressadamente, saiu da motora “Mar obedece a Jesus” olhou para a tripulação e disse-lhe:
“Gude vai” - Good bye- amigos, acenou o Quico com o seu boné e fiquem a fazer a digestão do tamboril…

“Pescador de histórias”

“ O Trio” na cela…
Alguns jovens, com os seus quinze aninhos de idade, numa friorenta tarde de dezembro de mil novecentos e sessenta e oito, época natalícia, filhos legítimos da ribeira,- Toninho “Zurique”, Santos, Candinho e João Muchacho- estavam a jogar futebol, no caminho que separava as casas do Bairro de S. Vicente de Paulo, em plena rua de S. João. 

No calor do jogo, o Ribeirinho acidentalmente, mandou uma bolada ao neto do Li e, depois de muito alvoroço, o Li -Alfredo Barros Lima, pescador mestre da motora Daniel José-apresentou queixa no posto da GNR de Esposende, tendo o processo seguido para o Tribunal já que o Li, teimosamente, não perdoou ao Ribeirinho, que se tinha “desfeito em mil desculpas”.

Os três amigos, afirmaram, no Tribunal de Esposende, que não tinham visto nada, contudo o “Caravelha”, como testemunha, tinha dito em tribunal que eles tinham visto tudo e que estavam a mentir…

Já dentro do tribunal, o Candinho começou a espreitar por uma “frincha” da porta da sala de audiências e, por mero azar, foi visto pelo “Garcia velho” que ficou possesso e furioso, e de dedo em riste, virou-se para o Candinho disse-lhe, num tom de voz ameaçador:

Ó seu vadio, vais para o xadrez e não vai demorar muito tempo…

O Candinho, descalço, tremia “como varas verdes” pois, possuía “cadastro” uma vez que , já tinha sido preso, por ser apanhado, a pescar à lampreia, num dia da estacada e, como castigo, foi condenado a “serviço comunitário” sendo obrigado a limpar o rio Cávado onde se amontoava o entucho das cheias. Claro que, o Candinho, não aceitou o castigo e foi parar à cadeia tendo afirmado que estava melhor preso que a trabalhar para o “tenente”…

O Adão, escrivão do tribunal, ia registando, na sua velha máquina de escrever “Olímpia”, todos os pormenores da ocorrência, organi-zando o processo para o veredicto final.

Depois da audição final, a mandato do juíz, os três ribeirenses fo-ram conduzidos, pelo sr. António carcereiro, para a prisão, por te-rem mentido.

Estiveram presos durante dois dias e duas noites e na friorenta cela, o Muchacho começou a chorar, dizendo que não queria morrer!

O Santos, passava o tempo a cantar o fado para se distrair e a Laura do Roto, que tinha uma loja perto da cadeia, foi fazer queixa ao carcereiro, senhor António, pai do Manel Maria da Ritinha Padeira porque não conseguia dormir com tanta barulheira. O trio foi avisado pelo senhor António mas, a irreverência era “fogo que não se apagava” com facilidade…

O Santos, continuou a cantar o fado mais baixinho e parecia um pintassilgo a cantar e a “dobrar”, ajudado pelo Muchacho! Este amigo desesperado, certo dia, pegou numa vassoura e queria “matar” o carcereiro porém, o Santos tirou-a das mãos para não agravar a situação penal... O João Muchacho ia resmungando para as paredes da cela e passava o dia a dormir, curtindo as mágoas…

O Candinho que se encontrava deitado no colchão “pulguento” da cela propôs aos amigos, para que no dia trinta e um fossem pôr o “Ano Velho Fora” pois, tinha uma carrela, uma japona do pai e um “sueste” do tio Geno.

O Santos olhou de soslaio para o amigo e respondeu-lhe pronta-mente:
O que quero é sair desta “cela velha” e o meu pai, quando chegar a casa, vai-me mas é “chegar a roupa ao pelo” e lá se vai o “Ano Velho Fora”…
O Pai do Santos, senhor Delfino, junto à lareira de casa, estava à espera do seu filho, para ir ao mar na Motora, e começou a ficar preocupado com a sua longa ausência. A senhora Maria Fifas, mãe do Santos, sentada num carunchoso banco, rezava pela sorte do filhinho que já lhe tinha pregado muitas partidas e precisava dele para apanhar isca porque tinha uns banhistas, seus clientes, que vinham aos sábados buscar as suas doses de isca para pescarem no cais “bilhano” onde as “pintas” estavam a “monte”... 
Passadas umas horas, veio a saber pela “Maranhona” que o seu filho Santos estava preso.
Foi, de imediato, falar com o carcereiro que lhe disse que o filho realmente estava preso e tinha levado dois dias de prisão assim como o Candinho Gaivota e o João Muchacho. O Toninho “Zuri-que” tinha sido multado e escapara à prisão, por sorte dele!...
Entretando, o Alfredo Muchacho, pai do João, ao saber da notícia pelo “Caravelha” deslocou-se à prisão e foi falar com o carcereiro que lhe disse :
- Posso libertar o João, tio Alfredo, umas horas antes …
Não preciso de favores, respondeu de imediato o Alfredo Mucha-cho, pois esse vadio vai cumprir os dois dias e “mais nada”… 
Pela noitinha, os três “artistas” foram soltos e, envergonhados, correram pela ribeira, e só pararam na Nélia para beberem uns suminhos a “meias” mas, o que eles queriam era ver a Branquinha de Vila Cova, a esbelta criada do Manel da Nélia…
Neste período natalício, a Nélia tinha as mesas e os balcões cheios de bolos de rei e muitas outras guloseimas: uvas passas, nozes, pinhões, figos de mel, frutas cristalizadas, chocolates…
Estes três “mosqueteiros” ficaram felizes por terem visto a Bran-quinha, com o seu avental folheado e a sua touca rendilhada, mas, perante os olhares ameaçadores do Manel da Nélia, que já os conhecia como “engatatões”, pagaram a despesa e foram para as suas casas porque tinham de ir para o mar, às cinco horas da manhã e o sono atormentava-os…
"Cantinho dos lobos do Mar"
NOTA:
Isto aconteceu em 1967/68 (?)
História contada, no dia 17 de Setembro de 2014 pelo Santos Coutinho, Candido V.Boas e João Muchacho, junto à lota e Esposende pelas 11 horas da manhã.
CMLB

por Carlos Barros
Os porcos rabichos
Estávamos numa sexta-feira, numa manhã cinzenta, nos inícios dos anos sessenta, com o nevoeiro a embaciar a bela paisagem do nosso Cávado, onde os barcos e as motoras desapareciam misteriosamente, dos nossos horizontes visuais, tal era o denso nevoeiro que se fazia sentir.
As gaivotas pairavam no ar, pronunciando bom repasto esperando pelas tripas-entranhas- lavadas pelas mulheres do matadouro, junto aos “terrões” do rio..

O portão do matadouro foi aberto pelo, funcionário camarário, Zé da Vila, muito cedinho e apenas o Valdemar estava encostado ao muro, com uma corpulenta vaca que olhava impavidamente para aquele sinistro local, mal ela sabia o destino que iria ter… O senhor Miranda- “Pastor”-, na companhia do Zé Fidó, estava a chegar com uma toura e um boi muito cornudo com uma longa barbela.
Pelas oito horas da manhã, começou a entrar o gado para o abate e uma carrinha Bedford de caixa aberta, transportava alguns porcos mal cheirosos e muito ruidosos, grunhindo, quase que adivinhando o seu fim…. O Calisto de Curvos estava a chegar com a sua bicicleta, fazendo grande “chiadeira”, com um cesto atrás, para transporte das encomendas e alguma carne.
O Zé Fidó chegava a ir a pé, a Viana do Castelo, Marinhas, Palmeira de Faro, Alvarães, Curvos, Vila Cova e outras freguesias transportando gado para o matadouro, percorrendo dezenas de quilómetros, durante muitas horas, para chegar às oito horas em ponto ao Matadouro Municipal de Esposende.
Com o matadouro em “rebuliço”, durante a manhã, o gado foi sendo paulatinamente abatido pelas “choupas” do Jaime da Faustina, Álvaro Filomeno e filho, pelo Zé do Talho (Teresinhas), sangrado e de imediato esquartejado, com o Valdemar a desfazer as vacas para o Talho Catora e algumas ovelhas que, com o seu ar “angelical”, foram sendo abatidas, numa ténue luta pela vida…
Os veterinários dr. Gonçalves de Vila do Conde e, mais tarde, o dr. Moreira de Barcelos faziam a inspecção sanitária aos animais abatidos, os quais levavam um longo carimbo, em toda a carne, como garante do controlo sanitário do gado. O senhor Marquês era um dos responsáveis sanitários do matadouro e estava sempre vigilante embora, fizesse “vista grossa” a algumas situações…

O Carlinhos da Jandira estava quase sempre presente às sextas-feiras ou segundas-feiras, e sob a cumplicidade e apoio do Zé da Vila, entrava no matadouro para segurar nas pernas dos bovinos, facilitando o trabalho do Valdemar e do Jaime ou mesmo do Zé Fidó, já que o seu desejo era receber a bexiga do animal para, depois de seca, ser utilizada de “cambra de ar” nas bolas de capão do Zé Pancas que possuía várias já que era o “rei dos papeizinhos-cromos- e das senhas da bola que era a garantia da bola de couro.
Os porcos, presos num longo e negro banco, eram mortos depois do gado, queimados com colmo, esfregados com pedras pomes e lavados com água quente e sabão rosa e posteriormente desfeitos pelos talhantes: Zé Fidó, Jaime…
Aos longos dos anos, as mulheres - Ângela do Corcunda, Quinhas da Vindeirinha (mãe do Quim Tripas), R. Mujica, Maria Picá- mulher do Russo-, Laura Ministra, Carma Ceareiro, Celina do Cocho) lavavam as tripas, -para as chouriças, “solas”,…- no rio que depois eram cozidas em panelões na cozinha do matadouro com o sangue dos animais e levavam um pequeno “quinhão” para casa…
João Louceiro com a sua carroça, auxiliado pelo Zé da Vila, Marquês e Artur Pessegueiro, recolhia e distribuía a carne do Matadouro pelos talhos de Esposende, poupando combustível uma vez que a égua estava sempre em boa forma física. Não precisavam da “Galp” apenas de uns fardos e palha e água para pôr a “viatura” a rolar…
A Páscoa, o mês de Agosto e o Carnaval, eram os períodos de maior actividade do matadouro onde o consumo da carne era maior.
O Quim Tripas sempre rondou o Matadouro para as suas aventuras e muitas pessoas estranhavam a presença deste ousado esposendense por estas paragens e a afunga-fisga- andava sempre ao pescoço, com os bolsos cheios de godos , as “balas” desse tempo…
Durante muito tempo, os porcos mortos e já preparados apareciam sem rabo e o sangue desaparecia dos alguidares e este mistério permaneceu durante muito tempo.
Interrogava-se o Álvaro do Talho:
- Como é possível os meus porcos aparecerem no meu Talho sem rabo?
O Jaime e o sr. Alfredo queixavam-se do mesmo mantendo-se preocupados já que muitos clientes compravam este saboroso apêndice, todas as semanas.
O Valdemar, gaguejando, disse ao Catora que desconfiava do Quim Tripas que não largava o matadouro…
Vou ver se saio mais cedo daqui, para levar o meu Matateu (tourinho domesticado e amansado pelo Valdemar) ao pasto no campo do Pirolau, avisava o Valdemar acelerando o seu trabalho.
O Zé Manel Catora afirmava que o Quim Tripas só vinha ao matadouro para nadar e dar uns mergulhos no “carreiro do rio” e para apanhar umas solhas ao pé, para levar para casa.
O Zé da Vila que estava a ouvir a conversa, junto ao Carlinhos, com o Tone Duarte na espreita, olhou para o sr. Álvaro do Talho e numa resposta rápida, avançou com uma idéia:
Na próxima vez, vou fazer uma emboscada e apanho o vadio que corta os rabos dos chicos…
Por volta das treze horas da tarde, o Zé da Vila, estava escondido por detrás da porta do matadouro, lado poente e com o gado todo abatido esperou, esperou até que….
Rastejando, pelo poente, apareceu o Quim Tripas, de calções de ganga, já muito “roçados” com uma faca enferrujada e pouco afiada, na mão, aproximou-se do banco onde estava o porco e cortou o rabo, que ainda fumegava, pela “raíz” e lançou-se em grande correria só parando na junqueira… O Zé da Vila, presenciando, esta situação e impotente em acompanhar a vertiginosa correria do Quim Tripas, entrou no matadouro, onde os seus amigos marchantes estavam a “mudar de roupa” e a lavarem as mãos e desabafou:
- Já sei quem é o “gandulo” que tem cortado os rabos aos nossos porcos!...
Quem é, quem é, perguntaram em uníssono, os talhantes presentes….
É o Quim Tripas que nos tem “roubado” os rabos e até deixou cair um copo plástico que era para levar o sangue para beber mas, não teve tempo!
Meu Deus, só poderia ser o Quim Tripas, mas é melhor fazer isto que partir os vidros todos do nosso matadouro como já tinha feito há uns tempos, concluiu o Zé do Alfredo perante o olhar impávido do senhor Jaime e do Júlio que tinham chegado ao matadouro naquele momento.
O cão “faine” (“fine”, em inglês) um “boxer” obediente e bem domesticado pelo dono, estava impávido, junto ao seu dono, senhor Jaime, com uma faca segura nos dentes para a entregar. O “faine” fazia muitos recados e era dotado de muito expediente e fugia da “vadiagem”….
O Quim Tripas cozinhava os rabos e, muitas vezes, comia-os crus e a acompanhar, bebia um copo de sangue que lhe sabia pela vida… Mas não era o único que bebia ou comia sangue –cozido- já que muitas crianças da ribeira também o faziam porque “fazia bem” à saúde… Era uma “receita” da época” onde a medicina apresentava muitas insuficiências e não estava evoluída como nos tempos de hoje.
Naturalmente, que o Quim Tripas não regressou, tantas vezes, ao matadouro, para o assalto aos rabos dos chicos mas, longe em longe, perante a distracção dos talhantes, os porcos ficavam novamente, sem rabos e eles diziam:
O Quim Tripas passou por aqui, mas já estamos habituados, afirmavam, conformados, os talhantes perante estas incursões do incorrigível Quim Tripas. Era uma criança ousada, destemida, aventureira, esperta e pugnava apenas, pela sobrevivência através de diversos expedientes e, nesses tempos, os estômagos de muitas crianças, “davam“ horas a todo o momento porque o alimento não abundava nos seus lares.
O Matadouro de Esposende, mais tarde, acabou, por encerrar, nos meados dos anos sessenta e o Quim Tripas adiou as suas traquinices contudo, outras aventuras apareceram que agitaram e despertaram o mundo das “crianças da nossa ribeira” que sempre viveram alegres, livres, felizes e confiantes na sobrevivência.
Esposende 6 agosto de 2014
"Cantinho dos lobos do Mar

CANTINHO DOS LOBOS DO MAR
por Carlos Barros

David, o espertalhão….
  
Em pleno mês de agosto, o senhor David Loureiro gozou um dia de folga e, como amante do mar, foi dar uma voltinha pelo areal até Cepães, sempre à procura de novidades e oportunidades….
  O senhor David, antigo guarda fiscal, sempre gostou do rio e do mar e um dos seus últimos barcos de pesca e recreio foi o ALVOR que acabou por ser destruído pelas tumultuosas marés que se fizeram sentir no passado inverno, no rio Cávado tendo a água do rio chegado a galgar a marginal, lançando muito  entulho para terra.
  Este esposendense nas suas horas vagas, percorria o rio Cávado lés-a-lés apanhando, à rede ou com recurso ao “carapau”, solhas e irões, estes no meio do limo ou por debaixo dos pedregulhos.
  O David, em sua casa, estava a conversar com a mulher sobre o almoço para esse dia e, com a mão na cabeça, coçando-se de uma mosca que lhe estava a atormentar, perguntou-lhe:
 -Mulher, o que vamos comer ao nosso almoço?
 -Ó homem apetecia-me um peixinho e um robalinho vinha a matar, respondeu a sua estimada esposa-Maria Prazeres- muito prontamente.
 -Meu Deus, onde vou arranjar um robalo, se fosse umas fanequinhas, ainda se arranjavam, agora um robalo mulher, nem penses….Isto é comer dos ricos…
  O David, não quis mais conversa com a mulher, com receio que ela pedisse um salmonete ou um rodavalho, fugiu em grande correria pela porta fora em direcção à praia para ver o mar.
 O David andou alguns quilómetros pelo areal até às rochas de Cepães e, já um pouco cansado, regressou pela areia húmida, desviando-se de alguns godos que estavam a descoberto.
  No seu percurso, o mestre David viu um aldeão, pescador de ocasião, a pescar no mar e alava a “cediela” com muito esforço, num carrinho de pesca todo ferrugento, já que trazia um robalo de dois quilos e meio que foi puxado para terra, com muito esforço.
  O David, pensou para si mesmo:
 - Esta é a oportunidade da minha vida!
 Ele abeirou-se do pescador e com ar de muita aflição, acenou-lhe com os seus musculosos braços e disse-lhe:
- Amigo, não leve este robalo para casa que está envenenado e ainda ontem foram duas pessoas para o nosso hospital Valentim Ribeiro, por causa de robalos que tinham comido!
  O que está a dizer, meu senhor, este peixe está envenenado, perguntou, o pescador, muito espantado!
  O David apontou para a espuma da arrebentação das ondas e disse ao pescador que, aparentava muito amadorismo,que essa espuma era venenosa e entrava nas guelras dos peixes, envenenando-os…
  Não o leve e o que lhe posso fazer é levá-lo, neste saco que tem aí, para o lixo, propôs o senhor David ao incauto pescador “de Avintes”…E acrescentou que lhe fazia um grande favor….
  O arguto David pegou no robalo em direcção ao Farol e levou-o para casa todo contente, em passo acelerado não vá o pescador descobrir amarosca….
 Chegado a casa, sita na rua de S. João, o David entrou abruptamente pela porta dentro, e gritou para a mulher:
- Temos aqui um robalo grande para o almoço que bicharoco!
- “Home” onde o compraste, perguntou a Maria ao David, que estava ofegante de tanto acelerar o passo?
  Olha Maria, pega e cala-te, não quero destas conversas, acrescentou o David, todo sorridente e com ar triunfante.
 A mulher assou o robalo com batatas do Zão e uns grelinhos comprados na loja da “Laura do Roto”, junto à cadeia, almoçaram satisfeitos, com os seus  três filhos. Uma pinguinha de vinho Felgueiras, comprado na Zeza da Labrista, ajudou a “empurrar o delicioso repasto.
 Este robalo sabe a pato, disse o David à mulher!
O quer estás a dizer David, isto não é pato mas robalo estás com os copos?
  Bem mudemos de conversa, pediu o David à sua desconfiada esposa cuja conversa estava a “cheirar a esturro”….
  O nosso ardiloso amigo, bem alimentado saiu de casa e foi tomar um café à Primorosa, onde estavam a jogar dominó, alguns dos seus amigos, -João Calhandra, Abílio Coutinho, Sousa e Álvaro do Talho- enquanto o Dr. Belchior fazia as palavras cruzadas, em francês, numa mesa junto à montra e o senhor António Fandino lia o Comércio do Porto, ao balcão com a “Fina” a mirar…
  Já pela tardinha, o senhor David despediu-se dos seus amigos e foi para casa e quando estava prestes a fechar a porta às chaves, ouve um bater na porta, um som estridente e contínuo.
   De imediato abriu-a e quem seria? 
  Precisamente, o pescador do robalo que, muito sorridente, entregou-lhe um saco de batatas novas, um molhe de cebolas e um grande galo acastanhado, de crista arrebitada e de aspecto fanfarrão.
  Senhor David, não tenho palavras a dizer pois, o senhor salvou a minha família toda da morte porque me livrou daquele robalo envenenado, agradeceu com muita gentileza, o pobre pescador.
  O David, com o seu ar de benevolente, disse-lhe que teria ido para o inferno, se não tivesse tomado aquela atitude e esclareceu ao pobre homem, que o robalo tinha sido enterrado no seu quintal.
  A mulher do senhor David que estava junto às trempes a aquecer a sopa , junto ao borralho,  chamou pelo marido para vir comer o resto do “robalo envenenado” que tinha sobrado do meio-dia..

   Ainda hoje, a Maria Prazeres, desconhece como tinha aparecido aquele robalo milagroso lá em casa….
“Pescador de histórias”

CANTINHO DOS LOBOS DO MAR
por Carlos Barros

O assalto às peras…
O Verão de mil novecentos e sessenta e quatro, presenteou Esposende, com dias de sol maravilhosos, sem nortadas e o sossego pairava na vila, excepto na ribeira onde o movimento, a agitação, a confusão e as “guerras” Norte-Sul, eram realidades constantes, sempre com a bola a rolar e os juncos e as pedras a serem maltratadas pelos “calosos” pés dos ribeirenses…
Junto aos beirais, as crianças estavam a preparar as suas aventuras, onde os “assaltos” às bouças, campos e pomares eram frequentes. Era a penúria económica e social desses anos de sessenta, com as crianças a lutarem pela sobrevivência, procurando nacos de pão, fruta, cenouras e até nabos de Gandra, ainda em fase de crescimento, pois eram mais tenrinhos. Nas suas casas era a lei da carência alimentar e nutricional porque o dinheiro era escasso nestas humildes mas, honestas famílias.

O dia tinha começado e os ribeirenses entraram de imediato em acção, relançando-se em ousadas aventuras pelo território esposendense que fervilhava de movimento e traquinice das inúmeras crianças que se espraiavam por todo o lado, saltando descalças e com as calças rotas no “rabo”.

O Artur Miquelino comandava as tropas e era o incontestável líder do grupo, mantendo respeito e coesão, já que um “berro” bem dado era disciplina garantida…

O Artur, com o seu cabelo grisalho, olhou para a “comandita” e propôs um assalto ao campo/bouça do Rocha Gonçalves onde haviam deliciosas peras que necessitavam de “colheita”… E poderíamos apanhar muita lenha para as “trempes” lá para casa, acrescentou o Serafim! O Santos lançou um grito de contentamento porque lá em casa já não havia lenha para o fogo, apenas uns paus , que eram de uns “cavaletes” da feira da Jandirinha que estavam apodrecidos pelo tempo.

O David Miquelino até saltou de contente porque poderia fazer umas “a-fungas” com alguns ramos….

Naturalmente que o “exército” ribeirense aceitou o convite e depressa se dirigiram em grande correria pela ribeira, campo do Pinto, estrada do Hotel Suave-Mar e finalmente chegaram ao portão da Rocha Gonçalves.

O Manel Laguna e o Santos vigilantes de fila, mandaram avançar porque não havia perigo à vista , ou seja, não havia vestígios do sr. Francisco que tomava conta dos terrenos e era uma “ameaça” permanente.

O Aré Mendanha, de nariz arrebitado, como sempre, estava atrasado e vinha todo contente porque tinha roubado uma bola de ténis que o Samuel Santos , que disputava um jogo com um francês, tinha lançado para fora do campo de ténis do Hotel, e a bolinha na estrada estava condena-da… O Aré apareceu todo sorridente e pronto para a acção, esfregando as mãos.

Com a autorização suprema do Artur, todos saltaram o alto portão da quinta, com muita facilidade já que a maioria destes ribeirenses estavam bem treinados no “aí vai peixe…” e, uma vez dentro do “território” inimigo, o Artur saltou para cima de uma pereira e começou a lançar as peras para o Manel Aicha, Santos, Manuel Laguna e João Muchacho que estava a dar uns toques de bola com uma pinha que estava no meio da faúlha. O Artur, sempre audacioso, ao mesmo tempo, ia cortando uns ramos secos resinosos que iam caindo “lá das alturas” e o Serafim e o Chana iam fazendo uns molhos que foram presos com cediela grossa apanhada no cais da ribeira.

Os bolsos dos “meliantes” estavam cheios de peras, apenas o Manel La-guna protestava porque não tinha nenhuma, já que tinha comido três peras, sem permissão do “chefe” Artur, sendo por este repreendido e ameaçado….O Tonho encostou-se a uma macieira e começou a roer umas maçãs verdes e guardava os caroços, bem esqueléticos, no meio da faúlha.

O Tonho, passados uns minutos, queixava-se da barriga mas ,uma pera de água fresquinha dada pelo Muchacho, foi remédio santo e funcionou co-mo uma aspirina!
Quando menos se esperava, com os vigilantes distraídos na comezaina, apareceu o senhor Francisco, armado com um ancinho, ameaçando os ribeirenses e todos fugiram como lebres, apenas o Artur Miquelino ficou “engalhado” no cimo da pereira e teve de descer, sendo apanhado pelo senhor Francisco que o prendeu no galinheiro da quinta, no meio dos as-sustados galináceos e dos pachorrentos patos.

Agora vou chamar o teu pai, disse furiosamente o senhor Francisco ao Artur que permanecia encerrado na improvisada prisão. 

O senhor Francisco, em passada larga foi para o Bairro de S. Vicente de Paulo-bairro dos pobres- chamar o senhor Miquelino que estava a falar com o Rogério e o Geno sentados no “murinho” da casa, enquanto que a mãe do Santos, senhora Maria Fifas, vendia umas doses de isca a uns banhistas de Braga.

Então senhor Francisco, o que aconteceu pois está vermelho como um pimento questionou o Miquelino?

Ó homem, anda depressa comigo que vais ver onde está o teu filho respondeu em soluços o senhor Francisco que suava por todos os poros da pele…

Os dois dirigiram-se para o local do “crime” e mal chegaram ao destino depararam-se com o galinheiro todo rebentado, porta escancarada, fechadura destruída, com as galinhas e patos espalhados pelo terreno, usufruindo da pouca liberdade que nunca tiveram…

O Muchacho tremia “como varas verdes” já que tinha receio de ser nova-mente preso porque tinha cadastro na GNR, tendo estado preso, na “casa da rata”, dois dias onde sofreu castigos físicos de alguns agentes do posto.

Meu Deus, que é isto, lamentou o senhor Francisco amarrando a mão à cabeça….

O Miquelino olhou longamente para o velho amigo e respondeu-lhe prontamente:

Não digas nada, pelo que vejo o meu filho Artur esteve aqui! O que espe-ravas dele Francisco! Tivestes sorte daquela “vadiagem” não te ter serrado a pereira e alguns pinheiros e se não o fizeram, foi porque eles precisam desta fruta e da lenha para o inverno...

Podes crer, que é verdade, concluiu o Miquelino perante o rosto estupefacto do senhor Francisco.

Já em debandada, os “salteadores” foram para junto do torreão do Salva-vidas, para vigiar os seus seguidores, temendo pela GNR, o que não aconteceu, e puseram-se a comer sossegadamente as deliciosas peras sem serem incomodados.

Quem me dera um pirolito fresquinho, disse o Hilário que andava sempre escondido e medricas, como sempre…

Quando desceram do torreão, já de regresso a casa, os ribeirenses encontraram o Miquelino e com um piscar de olho, este desabafou:

- Meus vadios, já nem digo nada mas, sei que estais com a barriga cheia e isto é que importa….

Todos para casa e amanhã não quero ouvir mais histórias destas, disse o senhor Miquelino para o filho Artur e seus súbditos….

O Aré Mendanha e o Manel Laguna despediram-se dos amigos dizendo:

- Malta amanhã vamos assaltar o quintal do senhor Regado que tem boas maçãs mas temos de ter cuidado com a espingarda que dispara balas de sal….Temos de dominar o Laurentino que toma conta do quintal, disse o Artur mas , isso é canja respondeu o chefe Artur com ar desafiador.
Os ribeirenses regressaram a casa para comerem a malga de sopa, já que a sobremesa estava no estômago….


O final mês de julho, os pescadores de Esposende tiveram fracas marés e pescaram, nas suas ”artes” muitas cavalas e sardinhas e a variedade do peixe foi escassa. Apareceram enormes congros, alguns com mais de dez quilos mas vieram do Castelo… Ainda tinha os anzóis, com a respectiva “cediela” na boca… Já escrevi sobre sargos, fanecas, sáveis e cavalas e a-gora irei “navegar” no mar das curiosidades, no aguerrido e sagaz congro para além de umas curiosidades “semânticas”…
O congro é um peixe teleósteo anquiliforme (conger conger-do latim congruSofre metamorfoses e efectua migrações semelhantes às da enguia e, co-mo particularidade, os machos são mais pequenos que as fêmeas.
Os pescadores têm muito cuidado ao “safar” os congros” e um dedo na boca é destino fatal… Como prevenção e segurança, uma navalha afiada no pescoço do congro, fá-lo dormir eternamente…
“Côngrua:-Pensão que se dá aos párocos para a sua sustentação.: Congruência:-Relação , harmonia, de uma coisa com o fim a que se propõe; Coerência; conveniência; propriedade;
Congraçador:-.adj. e s.m.- que aquele que congraça; reconciliador; Congraçar:- harmonizar; pacificar; tornar amigo;reatar amizade.
Congruo:-Apto: adequado; proporcionado; suficiente; condigno;
Congruísmo:- Doutrina teológica, segundo a qual Deus dá ao Homem graça côngrua ou bastante.

Consultas:-
Dicionário Encilopédico Português- Editorial Verbo, S.A. 2006;
Dicionário C. Língua Portuguesa-Tomo 1.Texto Editores.
Compêndio de Zoologia-Porto Editora-
-.
“Pescador de histórias”
26 de Julho 2014


O Toninho foi fintado….
Era uma segunda-feira, dia de feira quinzenal em Esposende, com o habitual alvoroço, no Largo Rodrigues Sampaio, com as tendeiras e feirantes a montarem as suas tendas e, pelas seis horas da manhã, já a Jandirinha, ajudado pelo filho Pedrinho, menino de doze anos, espetava os ferros para prender as pontas das varas, com cordas, que constituía a estrutura do toldo.           
As peças de tecido e miudezas - alfinetes, ganchos de cabelo, elástico, rendilhas, tubos de linhas, agulhas, colchetes…, eram colocadas numa banca, assente em cavaletes feitos pelo Carlinhos com a ferramenta do pai ou pelo Hermenigildo.
As barracas espalhavam-se, como cogumelos, pelo Largo da feira com as roupas, cobertores colchas, “samarras”, sapatos e botas, de toda a qualidade e feitio. As botas de sola de “borracha de avião”, para as crianças, eram as mais procuradas pelos clientes porque o inverno aproximava-se e esse calçado resistia às intempéries, mesmo com os jogos da bola na ribeira…
            O trânsito estava acelerado, com os carrinhos de mão transportando legumes e hortaliças, empurrado pelas lavradeiras de Góios, Marinhas, S. Bartolomeu, Apúlia e Gandra, “capital concelhia dos deliciosos nabos”.
            A tia Louceira já estava instalada, no lado nascente do Largo, com a sua louça espalhada - alguidares, cântaros, bacias, travessas, copos, chocolateiras, panelas, pois a “era do plástico” ainda estava um pouco distante.
A feira periódica em Esposende, era o eclodir de uma base económica local muito importante e Esposende fervilhava de movimento comercial, social e humano e com esta feira, Esposende despertava da melancolia diária porque era uma vila pacata e com muito pouco movimento.
            Em todo o espaço do Largo Rodrigues Sampaio e parte da ribeira norte, se espalhavam-se barraquinhas, tendas vendendo os mais diversos artigos e em plena ribeira estava o gado a ser negociado pelos comerciantes com as mãos cheias de notas de cem e quinhentos escudos, discutindo, gesticulando e “bufando” à procura de embaratecer, o preço do gado, sob o ruído ensurdecedor do grunhir dos porcos.
Junto à casa da Ciloca estava a ser montado o Circo “Torralvo” com a criançada a assistir à sua demorada montagem e a olhar para alguns animais enjaulados. 
            Na loja/armazém de cereais do Abílio Coutinho, o dia de feira era de incessante trabalho na pesagem do feijão, milho e outros cereais que as mulheres lavradeiras do concelho vinham vender, sendo esse cereal logo ensacado, depois de ser pago aos vendedores. No balcão com a sua longa pedra amarela de “mármore”, o Tio Abílio e o Carlinhos iam servindo os clientes habituais, vendendo arroz carolino ou agulha-saco-, sabão rosa,   queijo, figos de cera, marmelada e outros produtos de mercearia.
Pelo meio da manhã, alguns pescadores vinham comprar tabaco- “Kentuques”, Negritas, Provisórios, geralmente “fiado”, normalmente os mais baratos, já que os maços da marca, com  filtro, Estoril, SG-Ventil, Paris,  Sagres, Porto, Sintra, Benfica, Sporting entre outros, tinham clientes mais      “abastados”…
            Foi uma manhã de árduo trabalho e os sacos foram-se enchendo de milho e feijão apatalado, mistura, manteiga, moleiro, branco, rajado…-, sendo amarrados com corda e amontoados contra a parede que eram os bancos dos pescadores quando bebiam a sua tigelinha, um “cagão” ou um copinho de aguardente com aniz em que o Tio Chora era cliente diário, chegando mesmo a levar aguardente num frasquinho que o colocava no bolso do casaco quando regressava a casa.
            Eram quase quatro horas da tarde, já com menos movimento no armazém, quando chegou o senhor José da Lucas, acompanhado pelo  Manel Pezinho para beber a sua malguinha de vinho carrascão, fornecido pelo Firmino de Vila Cova que o transportava, quase sempre à noite, num  camião com o Manel Cunha e o Augusto a ajudarem a pipa a rolar sobre rolos-toros- de madeira para as traseiras do armazém, onde estava a tasca. Com uns figuinhos ou uma chouricinha, estes pescadores lá iam bebendo, o precioso líquido, mas sempre moderadamente, ao contrário de outros que bebiam até cair….
            Com o relógio da Igreja matriz, a dar as cinco horas, o Toninho entrou de rompante na loja para beber o seu copo mas, por grande azar, o Carlinhos estava ao balcão e ele sabia que o sobrinho do senhor Abílio não lhe dava vinho. A Tia Alice encontrava-se na tasca a servir um copo ao senhor Fernandinho que, com as suas mãos pretas de ferrugem e óleo, votava umas malguinhas “abaixo” da goela, sem respirar…”Estas já se foram” dizia ele, com o seu ar de homem atarefado….
Carlinhos, dá-me uns sugos, pediu o Toninho ao Carlinhos que estava desconfiado perante tal inusitado pedido.
Será que o Toninho me quer entreter a buscar os sugos e vai lá para trás beber uma tigela, pensou o Carlinhos!...Fazendo uma simulação que ia buscar os sugos, o Carlinhos sempre a olhar para o Toninho e este “zás”, num ápice desapareceu para beber a tigela…
Já a tia Alice estava com a caneca a despejar o vinho para a malga do Toninho, apareceu o Carlinhos que num gesto de coragem e rapidez, afastou a caneca da malga, enquanto a tia Alice olhava surpreendida com esta situação!
Tia, está a dar de beber a uma criança, isso comigo não faz, senão vou-me já embora para casa, ameaçou o Carlinhos. Por mais estranho que pareça, a Tia Alice ficou imobilizada e teve a sensatez de compreender o gesto do sobrinho….
O Toninho espantado, olhou para o Carlinhos e, sem ameaças, o que era raro, desabafou:
-“Filha da mãe, tive azar, mas para a próxima, quando não estiveres vou encharcar umas valentes tigelas….
O Toninho saiu do armazém, encostadinho à parede e já na saída, foi perseguido pelo Carlinhos, em curta correria porque já levava uma cerveja cristal surripiada, de uma das muitas grades que estavam junto à parede da loja.
            Hoje foi o meu dia de azar lastimou o Toninho quando se dirigia para a ribeira ou, provavelmente, para a Zezinha da Labrista, para “matar” a sede….
            O Carlinhos regressou para junto dos amontoados de sacos de milho e feijão, para ouvir o senhor Zé da Lucas a contar a sua vida no navio de fio e do Brasil, onde viveu alguns anos.

“Pescador de histórias”
Esposende 15 de Setembro de 2014 

CANTINHO DOS LOBOS DO MAR por Carlos Barros

    
Um pescador improvisado…

 A motora Torrão, cuja proprietária era a Berta Bichesa, estava  em mau estado de conservação e as tábuas do convés estavam um pouco esburacadas, “dançavam” e “chiavam” debaixo das galochas dos  tripulantes e o cheiro do gasóleo perfumava todo o porão e convés.
 Por esta motora, passaram inúmeros pescadores: “Ilhoca”, João Mona-emigrante brasileiro-, Manel Sapateiro-Rosário-, Rogério, Delfino Fifas, Luisinho, Alfredo Muchacho, Pedro, Zé dos Passos…
 O Luisinho era o mestre desta embarcação e com a sua experiência, lá ia fintando a fúria das  ondas do mar, na companhia do assustado Zé Pereira dos Passos-, mais conhecido na gíria dos pescadores por “Zé Tolo”.
  A noite saudava a tripulação, com o seu “manto de estrelas” e a lua iluminava a esperança destes  combativos e corajosos pescadores de Esposende.
  Era o momento de largar as redes e algumas “rascas” e todos trabalhavam afincadamente apenas, o Zé passava o tempo a “contar as estrelas”…
  Já em pleno mar, não muito longe da costa, o Pedro gritava:
   Tantos badejos, estão a monte irmãos!...
   O Alfredo Muchacho olhou para o mar e os badejos serpenteavam à superfície e estavam na “babuja”… Pedro pega na linha e vê se pescas algum, desafiou o tio Alfredo.
  Já com as mãos “traçadas” pela linha de tanto alar, o Pedro, durante uma hora, nada apanhou perante o desespero do Luisinho e do João Mona que queriam levar uns badejos para casa.
   O Tio Alfredo, nervoso, “arregaçou” a boina para trás, pegou na “cana do leme”  e com uma linha, anzol e isco, pôs na mão do Zé e disse-lhe para pescar, empurrando o Pedro que estava a embaraçar…
  Tio Alfredo, eu não sei pescar, se fosse tirar água da motora e encher umas gigas de fanecas, agora pescar, lamentava o Zé perante o ar ameaçador do tio Alfredo!
    Pesca e caluda, ameaçou o Tio Alfredo com cara de poucos amigos.
   O Ilhoca fumava o seu cigarrinho encostado à casa do leme, junto a uma bóia, encimada com uma  bandeirola amarela.
    O Pedro encostado à casa do leme mostrava-se envergonhado com o seu insucesso na pesca ao badejo…
     O Zé  começou a pescar, olhando sempre para o Tio Alfredo que estava com o galheiro na mão e o peixe começou a mordiscar o anzol e, passada uma hora, sob os olhares do Luisinho e da restante tripulação, o Zé tinha pescado doze valentes badejos e um deles de quase dois quilos de peso.
    Boa Zé, és o maior confortava-o o tio Delfino Fifas, todo encasacado, defendendo-se da brisa fria que se fazia sentir.
    O Tio Alfredo abraçou o Zé, todo radiante pela façanha do seu amigo, e olhou de canto para o Pedro  e disse-lhe:
     - Não tens vergonha! Não sei que andas aqui a fazer na motora, eu deveria era despachar-te, pôr-te a “penates” !
    O Zé rejubilava de contente, mostrando os inúmeros badejos que tinha pescado, reluzentes e escorregadios que iam deslizando na motora ao “sabor” do baloiçar da ondulação do mar.      Apanhou três cavalas que deram muita luta ao serem aladas e o Rogério Chana, ainda jovem, teve de dar uma ajudazita ao amigo Zé.
    O tio Alfredo, já no regresso à barra, deu um aperto de mão ao Zé e prometeu-lhe uma malguinha -vinho com gasosa- na tasca do Coutinho embora o Zé não fosse homem de beber.
     Já com a motora  junto ao cais, tripulada pelo Luisinho, o tio Alfredo, olhou para o Pedro e  desabafou:-
   - Não prestas para nada e se o Zé fosse tolo, como injustamente, lhe chamam, não pescava tantos badejos e só numa hora!...
   O Pedro envergonhado, ia olhando para a Capelinha de  S. Lourenço, para afagar a  tristeza que o invadia…Com tanto azar, ainda escorregou numa das cavalas e caiu desamparado, batendo com a cabeça no alador.
   O Torrão de regresso ao cais, atracou finalmente pela tardinha e toda a tripulação se dirigiu para as suas casas porque o mar esperava-os no dia seguinte e era preciso descansar e   “acumular “ energias para novas pescarias.

Curiosidades
   Na primeira quinzena do mês de julho, os pescadores de Esposende fartaram-se de apanhar cavalas e inúmeros cardumes foram malhados nas redes. Os clientes da lota de Esposende, compraram muita cavala, a preços irrisórios e muitas caixas ficaram por vender e algumas delas foram para isca.
  Eu , com frequentador assíduo da lota, não me recordo de tanta cavala pescada, embora seja um peixe muito saudável, não tem, contudo,  grande valor comercial nestas paragens.
Cavala:-Peixe teleósteo perciformes da família dos escombrídeos, do género “scomberomorus”, ger. Pelágicos e migratórios, que possuem corpo alongado , pouco comprimido, cabeça afilada e “focinho” pontiagudo sendo o  seu dorso   azul-escuro  e ventre prateado. Há várias variedades de cavalas: Cavala-perna-de-moça, cavala-preta,  cavala sardinheira, cavala verdadeira,  (com grande valor comercial), cavala branca, cavala canguçu,  cavala-pintada, cavala africana, cavala-aipi,…
O termo cavalada significa atitude ou fala indelicada; grosseira; brutalidade; asneira; disparate.
Cavalão:-cavalo grande; indivíduo muito alto e corpulento; indivíduo rude  e grosseiro:
Cavalar:  que pertence à raça do cavalo relativo a ou próprio de cavalo:
Cavala:-Zoologia- Espécie de sarda, encontra-se nas águas  quentes do Atlântico e Pacífico.

Consultas: Dicionário Houaiss da L. P.-Temas e debates-Instituto António Houaiss de Lexicografia Portugal-Lisboa 2005;Dicionário Enciclopédico Português-Editorial Verbo, S.A. 2006.
                               

CANTINHO DOS LOBOS DO MAR por Carlos Barros

O “congrão”…
A manhã esbracejava-se e o som da “babuja” do mar ecoava na imensidão da ribeira, despertando alguns tordos e “charréus” que dormitavam no seio das silvas e junto às raízes dos juncos, perfumados com translúcidas gotículas de orvalho. O manto que cobria a ribeira encolhia-se de frio perante a aragem gélida que circulava, em ritmo lento, sobre a sua superfície.
Estávamos em mil novecentos e oitenta e seis, um ano em que o mar andava bravo e os pescadores ficavam em terra, passando o tempo nas tascas, em franco convívio, sempre com as malguinhas e tigelas ao lado deles….
O relógio da Igreja Matriz marcava cinco horas matinais e logo as sonoras pancadas dos sinos, acordaram os pescadores do sul, que rapidamente se equiparam, com agasalhos quentes, em direcção à rampa do cais, para mais uma jornada piscatória.
Com o Dimas a dormir, o João Paquete, pescador arguto, inteligente e bem falante, chamou à pressa o sobrinho Tone, para preparar as “artes” para mais uma pescaria no mar. Com os baús nas mãos, preparados pela Laura Paquete, lá foram estes ousados pescadores para a catraia que estava ancorada no cais que baloiçava impulsionada pela pequena ondulação que se fazia sentir.
A embarcação partiu do cais, a remos, em direcção à barra, a velocidade de cruzeiro já que as remadelas eram lentas embora ritmadas pelos musculosos braços e calejadas mãos destes pescadores. Chegada à barra, a catraia entrou no mar, perante ondas sempre agressivas e perigosas e percorrida meia–milha marítima, foram lançadas as linhas das fanecas para as entranhas do mar cuja superfície se mostrava de um azul celeste reluzente e acolhedor .
De regresso a terra, o Tone Paquete, já com as linhas lançadas, gritou para o tio:
Tio, que grande tronco de árvore vai ali sair da barra!
Cala-te Tone, aquilo é um congro “taludo” e estamos ricos sobrinho!...
O Tone pega no bicheiro, que estava na proa e lança-o sobre o congro que nadava num serpentear lento, sem a vivacidade habitual…
O congro sentiu-se cravado e num, safanão forte, livrou-se dos anzóis perante o desespero dos Paquetes.
Estamos desgraçados, o congro vai fugir, lastimou o João Paquete para o seu sobrinho.
Tone, ele tem “jorra“ – sargaço - na guelra e não pode ir longe, pega outra vez no bicheiro enquanto estou aqui ao leme!
O Tone, redobrou as suas forças e com o bicheiro bem firme, cravou os anzóis junto à cabeça e lançou o “congrão” para dentro do barco, caindo, com grande estrondo, sobre os paneiros ensardinhados.
Temos o dia ganho, disse efusivamente o João Paquete, com o seu boné bem “espetado“ na cabeça, para o Tone, que estava de pernas para o ar, tal foi o tombo …
A catraia entrou no rio com estes dois heróis a remarem, cansados mas, contentes, dirigindo-se para o cais norte, onde algumas peixeiras mais madrugadoras - tia Graça, tia Inocência, tia Dina…- os esperavam para comprarem as fanecas, pescadas e alguns peixes-rosas, pescados nas linhas do dia anterior.
Meu Deus, que grande congro, isto foi um milagre gritou a tia Inocência de “boca aberta” olhando para a Maria da Batata que estava sentada, com a gamela ao lado, num degrau da casinha da guarda-fiscal….
Raul Brandão escreveu que as peixeiras da Nazaré “são a vida desta terra”, mas as de Esposende também o são…. Citando Alves Redol, estas mulheres-peixeiras- eram de “lidas sem fim”.
O Tone Paquete e o seu tio João, pegaram no congro e foram pesá-lo à mercearia do António do Sul, e pesavatrinta e seis quilos, com preço estipulado a cinco escudos o quilo.
A ”Maria das Voltas” que estava a comprar meio quilo de farinha de pau e um quarto de quilo de açúcar amarelo, prontificou-se a comprar o bicharoco porque tinha uma encomenda de um restaurante da Póvoa de Varzim. O negócio foi fechado ao balcão e o congro foi metido num saco de serapilheira, para ser levado ao seu cliente.
O senhor António do Sul, pessoa muito amável, simpática e respeitável, deu um pedaço de corda à Maria, para atar bem o saco e disse à “peixeira-negociante”:
O “bicho não é de confiança” e amarra- bem!
A “Maria das Voltas” agradeceu, e foi apanhar a camionete do Linhares que partia às onze horas da manhã e era conduzida pelo Joaquim das “camionetes” e com este condutor, a viagem era “paródia” garantida….
Vendido o peixe, o João Paquete, virou-se para o seu sobrinho e com um largo sorriso disse-lhe:
Tone, amanhã, não vamos ao mar porque o dia está ganho com este “monstro “ que pescamos…
Amanhã, à tarde, “pego” no Táxi do Continência ou do Isac e só paro na Póvoa de Varzim para ver um filme no Cinema Póvoa Cine ou no Garret.
Ó meu tiozinho, ainda bem que não vamos porque estou com o corpo todo “partido” das horas a apanhar isca para os banhistas de Braga, pulou de contente o Tone Paquete.
Já em casa, o João Paquete chamou pela irmã Laura, dizendo-lhe que hoje o jantar iria ser melhorado e podia ir ao António do Sul comprar arroz agulha, bacalhau do graúdo e uns figuinhos de ceira.
A “Maria das Volta” de regresso da Póvoa de Varzim pagou o congro e durante muitos dias naquele humilde casa, a alimentação foi melhorada e “regada” com uma boa pinguinha de vinho Meireles comprado na mercearia do Francisco Areias.
O Dimas e a Zinda, olhavam para a mãe, confusos com tanta fartura, e perguntou-lhe:
Mãe, donde veio tanto dinheiro? Será que choveram notas do Torreão do Salva-Vidas”?
Caluda meus filhos! Comam e calam….

CANTINHO DOS LOBOS DO MAR por CARLOS BARROS



“Uma travessa voadora”….

   No ano de mil novecentos e sessenta e quatro, o cais de Esposende, acolhia muitas motoras que andavam, em pleno mar, na sua faina piscatória com as suas tripulações sempre ativas e divertidas. O trabalho no mar era sempre acompanhado com brincadeiras, despiques, apostas e diversões, entre a tripulação, tendo como palco, o escorregadio  convés, sempre “oleado” de  “langanhos “ de raias e de congros, bem “taludos”...
  A motora Filomena Antonieta tinha chegado do mar e depois de ancorada  e presa, pelas “amarras” nas argolas do então designado “paredão do Salva-Vidas”, a tripulação começou a descarregar o peixe que era transportado em caixas para  terra. Na rampa, onde se encontravam as bancas da lota, em frente do “Salva-Vidas”, as peixeiras esperavam pelo pescado, num ambiente de alvoroço e de algazarra, numa sessão de gritaria e de constantes ameaças, sempre pugnando pelo melhor preço.    A tia Silvana e a tia Graça, com as gargantas afinadinhas, silenciavam as outras vozes regateiras que se faziam ecoar ao longo da rampa do cais norte.
As autoridades marítimas estavam geralmente presentes no cais, através dos  guardas-fiscais (Lopes, David…) para fiscalizar o pescado que saía das motoras .
 O Tenente Tavares Coelho era a autoridade máxima da Delegação Marítima de Esposende que se localizava no Largo Rodrigues Sampaio, perto do Armazém /mercearia e tasca do Abílio Coutinho.
 A tia Esmeralda do Salva-Vidas costumava, por respeito ou “exigência”,  oferecer uns peixinhos ao sr. Tenente e para o efeito, levava sempre  uma travessa de porcelana, já com muitos “agrafes”, onde os peixes eram colocados, oferecidos pelos mestres das motoras.
 Na motora, o tio Alfredo Muchacho não gostava muito destes “arranjos”  e disse ao Romão:
- Romão, hoje o Tenente vai ter uma surpresa…
O Romão” Magnório” começou a esfregar as mãos de contente porque sabia que iria haver  tramóia e perguntou ao divertido tio Alfredo, o que estava a  tramar!
Romãozinho, quando a tia Esmeralda vier com a travessa buscar o peixe, dá-lhe um tropeção para fazer voar a travessa … O Morrossol estava a ouvir a conversa e prontificou-se também, a entrar na cena, oferecendo-se para dar uma rasteira ao Magnório…
O Romão e o Morrossol saltaram, como gafanhotos, de contentes no  poupa da motora, longe dos ouvidos das muitas peixeiras presentes, entre as quais a Tia Esmeralda.
O Romão olhou para o tio Alfredo Muchacho e  disse-lhe que ainda  há pouco tempo tinha “roubado” dois coelhos à Tia Luzia e três galinhas no quintal da Escola, à D. Loca e  tinha feito uma grande  patuscada no “Zip Zip” onde todo o “mundo comeu”…Quem fez isto é porque tem coragem, confessava descaradamente o Romãozinho ao tio Alfredo. Este ficou convencido que tinha ali, o artista ideal para a sua ideia!
Já o peixe estava quase descarregado no paredão, quando a tia Esmeralda, com o seu colorido xaile, pelas costas, aproximou-se, com a travessa, já com umas fanecas e dois pequenos badejos, dados pelo João Careca quando, inesperadamente, o Morrossol empurrou o Romão ao encontro da tia Esmeralda, batendo com a mão direita na travessa e esta, despedaçou-se em mil cacos contra as pedras, com os peixes a mergulharem para o fundo do rio.
 Meu vadio, maldito que partiste a minha  travessa e agora o  senhor tenente  não vai levar peixe, lamentou em alta berraria a tia Esmeralda, com gestos  desesperados, ameaçando o Romão, enquanto que o Morrossol se esquivava para dentro do porão da motora, simulando  lavar o convés.
O Magnório fugiu em grande correria para dentro da Maria Antonieta  onde o tio Alfredo Muchacho o esperava, muito contente, abraçando efusivamente o Romão, felicitando-o pela façanha.
  Romão, pega no baú e vai depressa para casa porque a tia Esmeralda anda atrás de ti e levas estas fanecas e chicharros para o jantar porque o tenente, desta vez, vai ver o peixe por “um canudo”…
CMLB

Esposende  30 de abril de 2014
CANTINHO DOS LOBOS DO MAR por CARLOS BARROSC


Um engate frustado
 
 Estavamos num domingo, e os pescadores de Esposende estavam todos em terra porque o mar estava “bravo” – “de mais” e os jovens Ilhoca, Bidú e Passos andavam todos aperaltados pela vila, de camisinhas de xadrez  de flanela  e calças vincadas e com sapatinhos a brilhar, com um pouco de lodo nas solas e uns rasgos de limo encravados na  biqueira dos sapatos, com as solas rotas.
  Com esta tarde soalheira, os três amigos foram à Pensão Rego beber umas malguinhas de vinhaça e mais depressa entraram quando viram, no hall de entrada, duas beldades, caídas do céu, que refrescaram logo a vaidade destes três mosqueteiros.
-Ilhoca,  olha para aquelas “gajas” são boas como milho, desabafou Passos Chino.
- “Tá calado” que vamos engatá-las disse logo o Ilhoca perante o olhar indiferente do Bidú.
   Sentaram-se à mesa e o Ilhoca pegou no Jornal de Notícias que estava sobre a mesa, ainda manchado com as cores do vinho, e começou a ler.
   As raparigas olhavam de soslaio para estes três intelectuais de “algibeira” e fizeram um sorriso comprometedor.
-Ó Ilhoca tu não sabes ler, disse o Chino num tom de voz desafiador e provocador.
   -Eu sei ler muito bem porque o meu professor foi o professor  Agostinho C. Manca que me ensinou muito bem, com aquelas letras de folheta, respondeu o Ilhoca num tom de voz altivo, para as meninas ouvirem.
   Então lê aqui, perguntou o Chino ao Ilhoca apontando para um título do Jornal onde estava escrito: ”Paulo VI, veio a Portugal”.
  O Ilhoca levantou o Jornal, e leu em voz alta:-
   Pau...Pau…lo vi, vei..ve..i..o a Portugal” leu “fluentemente” o Ilhoca aos seus amigos.
  O Bidú, que não conhecia uma letra do “tamanho de um boi” aplaudiu e bateu muitas palmas para as meninas ouvirem e ficarem impressionadas com estes três cultos leitores.
  O Passos que conhecia a numeração romana ensinada pela Professora D. Isolina e corrigiu o Ilhoca:
  Ó seu “burro” não é “vi” é sexto, em romano, respondeu com ares de sabichão o Passos para o seu amigo que estava corado, olhando para as garotas que se riam com aquela cena teatral.
O Bidú, irritado, gritou:
-Ó Fernando , manda mas é três malgas de vinho e umas iscas de bacalhau da Lininha, para o balcão e a leitura não me interessa porque estes tipos são uns analfabetos como eu….
O Passos levantou-se do banco e olhando para as meninas,  com ares de “engatatão” disse-lhes:
Olhai minhas donzelas, eu sou o mais inteligente de Esposende e como pescador ninguém me bate e se tivesse posses, seria Doutor como o meu primo Dr. Juvenal.
  Estas veraneantes, levantaram-se e saíram pela porta fora da Pensão, num passo lesto e ritmado.
   O Bidú e o Ilhoca, piscaram o olho um ao outro, saíram da tasca e foram para o paredão onde se sentaram, observando aquelas mulheraças que passeavam por entre os varais da ribeira, abanando os “traseiros” e pontapeando os juncos que se atravessavam no seu caminho.
   De vez em quando, estas “ninfas do Cávado” paravam nas silvas e apanhavam e comiam umas saborosas e  “gordulhas” amoras silvestres.
  Olha, o doutor ficou a beber na pensão e nós estamos a olhar para estes “traços”! Então não somos ”finos” concluiu o Bidú para o seu amigo Ilhoca?
Está calado “home” que o Passos pode ouvir, exclamou o Ilhoca com uma voz de “pintassilgo”…
  As duas donzelas, fizeram uma pausa no seu olhar, dirigiram-se em direção ao rio, junto às “escadinhas, onde o Armindo Murraca e o Paulo Gatinho pescavam à “chuncalhada” aos irões que estavam grossos”, enquanto que o Santos e o Pezinho apanhavam isca no lodo, junto ao cais partido, em frente do salva vidas.
 As esbeltas jovens, com meias de vidro, “afagando” as suas belas pernas, deliciaram-se a ver tantos irões a “rabiarem” numa panela de alumínio, toda esburacada que o o Manel Chora tinha trazido da cozinha, sem a mãe saber.
 O Ilhoca e o Bidú, ficaram ciumentos por verem as suas “amadas” junto aqueles dois ”meias-lecas”, olhando-os  com ternura, e admiradas pela sua arte de pescar.
 O Passos espavorido, apareceu na ribeira, à procura dos dois amigalhaços e ao vê-los no paredão   gritou-lhes:
 “Homes”,  vamos embora que o Zé Paquete já me avisou que temos que ir “P´ró ”mar às duas da manhã e esta “pescaria” não dá nada e ainda temos de tirar água da catraia e nem sei onde estão os vertedouros…
  Estas meninas são muito “finas “ para nós que só cheiramos a peixe e foi por isso que não nos ligaram nada e só aqueles dois “vadios” é que tiveram sorte, lamentou O Bidú !...
 Quem me dera ser irão para estar junto delas, desabafou o Passos para os dois amigos, muito desolados pelo falhanço do engate.
  As duas jovens recolheram à pensão e nunca mais foram vistas nas redondezas de Esposende e veio a saber-se mais tarde, que eram raparigas de Pica de Regalados e que tinha vindo passar o fim de semana à Pensão Rego,
   Os três mosqueteiros, nas visitas diárias à tasca da Pensão Rego perguntavam sempre ao Fernando, empregado de balcão pelas “jeitosas”, ao que ele  prontamente respondia:
  Voaram como gaivotas para o mar e até eu ainda espero por elas!...
 Esta história nasceu de uma entrevista informal, na rua N.Srª da Graça- feita pelo Carlos Barros ao seu amigo José Rego, no dia 17 de fevereiro, pelas 16 horas.




  

CANTINHO DOS LOBOS DO MAR por CARLOS BARROSCarlos Barros

Bajão, o afogado!...
O antigo salão dos Bombeiros de Esposende, era um espaço de lazer e de convívio de muitos esposendenses que desfrutavam desse local privilegiado para ver televisão, jogar damas, xadrez, “snooker”, bilhar livre, cartas-sueca-“loba”,” King”-, dominó, sendo o senhor António da Assembleia o responsável, espécie de um “mordomo”, sempre atento, com o seu olhar “atemorizador” e de respeito. Eram poucos, os que ousavam entrar, no salão sem ser sócio porque o senhor António punha-os logo em “marcha rápida” pela longa escadaria de madeira, de acesso ao salão, com a respectiva parede repleta de quadros dos pescadores de Esposende mais antigos: Piloto da Frita, Zé Grande, Laurisá, …
Pela tardinha, o Carlinhos da Jandira estava a jogar damas com o João Carlos Silva, numa partida bem disputada já com o Carlinhos cheio de damas e o seu opositor a coçar a cabeça, com o jogo perdido. Junto à janela da varanda, o senhor Praia disputava o seu histórico duelo de damas com o senhor Carvalho, relojoeiro da Rua Direita, com o senhor Mário Belo e o Edgar a assistirem ao espetáculo “damístico”. Mais ao lado, jogava-se bilhar livre entre o Albaninho “Penico” e o Albininho de Gandra, com o Tonho e o Tozé Reis à espera que o jogo acabasse para jogarem a sua bilharada.
O “snooker” estava sem clientes a sua ocupação era mais aos sábados e domingos à tarde e em pleno jogo, os jogadores estavam sempre à espreita no “contador” porque as moedas eram escassas e os trocos contavam-se….
Nesse momento, o ambiente dos bombeiros foi alterado e agitado, com o toque da sirene, sinal de afogamento e o João Carlos, bombeiro voluntário sempre ativo, saltou da cadeira, como um ágil lince, levantou a mesa onde estava o tabuleiro das damas, com as pedras a rolarem pelo chão em diversas direcções, e foi para o local do afogamento, perante o olhar estupefacto e desesperado do senhor António da Assembleia… O Carlinhos, limitou-se a apanhar as pedras espalhadas pelo chão, uma vez que o senhor António já estava prestes a lançar o ralhete da ordem...
A ambulância Chevrolet NM-12-89, -relíquia nacional- saiu a “grande velocidade” para socorrer uma vítima que estava prestes a afogar-se:
O Chico Bajão, com os seus trinta e quatro anos, foi nadar para o Rio Cávado, junto ao matadouro onde havia alguns poços traiçoeiros e, como nadava muito pouco, foi arrastado pela corrente e começou a deslizar pelos fundos arenosos do leito do rio.
O João Carlos saltou para um barco à procura do Chico e lançou-se à água e conseguiu, após porfiados esforços, amarrar a vítima, puxando-o para dentro do barco, já muito desfalecido e inconsciente, pois tinha permanecido dentro da água, pelo menos, durante dez longos minutos.
O Chico foi colocado numa maca e transportado para o Hospital Valentim Ribeiro e, posteriormente, para o Hospital de Barcelos, onde esteve um mês em ”coma”, sendo o diagnóstico dos médicos muito reservado.
O amigo Chico conseguiu, milagrosamente, recuperar e actualmente faz uma vida normal, deslocando-se na sua motorizada, pelo concelho de Esposende, sempre à procura de novas aventuras. Nas garraiadas em Vila Chã, Santarém e Ribatejo, o Chico esteve presente em muitas delas, assumindo atos de coragem perante as investidas dos touros e tem ganho muitas apostas nessas garraiadas, apesar de já ter partido várias “costelas”…
Numa garraiada em Vila Chã, em plena festa de S. Lourenço, o Chico, incentivado pelo Adelinho Vilas Boas, foi enfrentar um touro, não muito corpulento, respondendo a uma aposta da Comissão de Festas e ganhou cinco contos mas as mazelas ficaram: sete costelas partidas e uma “hospedagem” no hospital…
O Chico, homem humilde e brincalhão, aparece muitas vezes na lota de Esposende, sendo pessoa muita grata já que nunca mais se esqueceu do Dr. João Carlos que lhe salvou a vida, junto ao matadouro e os galos que gentilmente lhe ofereceu, como gratidão, jamais pagará a vida, que lhe foi salva pelo corajoso João Carlos, cardiologista esposendense de renome, que os esposendenses muito se orgulham.

O Chico Bajão nunca mais deu um mergulho no rio, apenas nada nas piscinas, mas com a água pelo peito…..


CANTINHO DOS LOBOS DO MAR por Carlos Barros

“A falsa goleada….”

 Em plena ribeira, num sábado solarengo, o Pezinho e o Geno depois de tirarem o pilado das redes no paredão, transportaram-no em gigas, para frente do Salva-vidas, para a secagem porque já estava vendido a uns lavradores de Palmeira do Faro, e com a tarefa finalizada, combinaram ir a Vila Chã, para assistirem ao Vila Chã-Esposende  para o Torneio Popular inter-freguesias.
  O Marrucho, velho amigo, com as suas sobrancelhas peludas e umas suíças a chegarem aos cantos da boca, tinha convidado estes velhos amigos para o referido jogo e prometeu-lhes umas malguinhas no bar, caso o Vila Chã ganhasse. E o Marrucho ainda foi mais longe: prometeu aos manos “Vilas Boas” uma malga por cada golo que o Vila Chã marcasse ao Esposende! 
 Os dois irmãos lá foram a pé até ao alto de Vila Chã, em direção ao campo do futebol para apoiarem o Esposende-E.S.C.  que, nessa altura estava, a participar no referido torneio popular, no qual  participavam várias freguesias do concelho: Apúlia, Góios, Marinhas, S. P. Antas, Palmeira de Faro…
  Por Esposende reinava a calmaria e a ribeira estava deserta, sem crianças, porque o domingo era para passear, ir à missa e à catequese e os sapatinhos novos, quem os tinha, não  eram para jogar à bola, para não se estragarem.
  Pelas treze horas, depois de um almoço apressado, os dois irmãos puseram-se a caminho de Vila Chã,  galgando a subida de S. Lourenço, num passo ritmado e acelerado porque a secura já estava a apertar a “goela”…
 Quando chegaram ao campo pelado do Vila Chã, lá estava o Marrucho à espera dos convidados que apareceram a suar por todos os poros da pele e valeu-lhes a boina preta do Pezinho para limpar o rosto  destes dois caminhantes.
  Vamos, para começar, beber uma malguinha ao bar, disse o Marrucho ao Pezinho e ao Geno porque com este calor, morremos  de secura…
   No balcão de madeira, decorado com casca de pinheiro e cheirando a resina, duas malgas deslizaram em direcção aos três amigos e num ápice, o vinho evaporou-se…
    Chegada a hora do jogo, o Pezinho, sempre estratega, propôs uma aposta ao Marrucho.
    Marrucho, vamos fazer uma aposta?
    Diz lá Pezinho qual é essa aposta, questionou o Marrucho com a sua  grossa e “arrastada”  voz!
    O Pezinho olhou para o Geno, coçou a cabeça e adiantou:
- Por cada golo que o Vila Chã marcar, pagarás uma tigela de vinho, aceitas ou não Marrucho, perguntou o Pezinho ao seu velho amigo.
  O Geno, no canto, do Bar, coçava o nariz e piscava o olho ao irmão porque antevia uma aposta, quase ganha…
  O Marrucho olhou desconfiado para o Pezinho e sem hesitação respondeu-lhe:
-Nem é tarde, nem é cedo, aceito a proposta…
  O jogo tinha começado e gritou-se golo!
  Golo de quem, perguntou o Marrucho!
  É do Vila Chã.!
O Marrucho  todo contente mandou vir uma rodada para a mesa que logo desapareceu…
Mais um golo! Mais outro golo! Um outro ainda!
São golos do Vila Chã, gritava o Geno que ia espreitando para o campo quando se gritava golo.
 Na realidade, foram marcados oito golos, mas os sete foram do Esposende e um do Vila Chã…
O Marrucho depois de pagar as sete rodadas do saboroso e carrascão vinho tinto, saltava de contente pela “vitória” do Vila Chã por sete a um, mal ele sabia que o resultado tinha sido ao contrário! O astuto e cúmplice  Geno, para conquistar as malguinhas, falseava o resultado !
 O Marrucho, já à saída do campo saltava de contentamento e de incontida alegria pela “vitória” do Vila Chã, um resultado histórico conseguido pela sua equipa perante o poderoso Esposende Sport Clube, filiado na Associação de F. de Braga.
 O Juca que observava a alegria do Marrucho, abeirou-se dele e perguntou-lhe:
- Porque estás tão contente Marrucho?
É que o nosso Vila Chã ganhou e logo por sete a um!...
O Juca surpreendido, chamou pelo Marrucho e disse-lhe, em voz alta:
O Vila Chã perdeu, mas foi por sete a um!
O que estás a dizer Juca!
  É verdade, eu vi o jogo acrescentou o Juca.
Claro, que sofremos uma grande “capilada” e podiam ser por muitos mais…
 Bandidos,  o Pezinho e o Geno enganaram-me e beberam sete rodadas de vinho à “minha conta”,  lamentou o Marrucho, com um ar furioso e ameaçador.
 Os dois irmãos já se tinha despedido rapidamente do Marrucho, antes que este descobrisse a “marosca”, e já “encharcadinhos”, desceram o S. Lourenço em marcha vertiginosa em direcção a Esposende e mal chegaram à Vila foram sentar-se no Largo dos Peixinhos, sobre as frondosas árvores para curtir a “piela”.
O Geraldo, o “De Gaulle” que estava  patrulhar  o Largo dos Peixinhos, abeirou-se dos manos e perguntou-lhes porque estavam tão vermelhinhos…
 Geraldo faz-nos um favor?
Claro que faço, se me derem duas croas para uma malguinha na Nazaré, faço o que vocês quiserem, respondeu prontamente o Geraldo,  vestido a rigor com o seu boné de “almirante”…
 Olha, se o Marrucho aparecer por cá, avisa-nos?
O Geraldo olhou de soslaio para estes seus dois amigos, coçou o pescoço e desconfiou que cheirava a esturro…
O Geno pôs a mão ao bolso do seu casaco de xadrez e deu, com muito custo, as duas croas ao Geraldo, que tinha ganho na venda de uma dose de isca a um turista de Barcelos, pescador desportivo, cliente assíduo na lontra, junto à foz do Cávado.
 Nessa tarde, o corpulento Geraldo patrulhou toda a zona limítrofe do Largo dos Peixinhos e felizmente, para os irmãos Vilas Boas, o Marrucho talvez já muito “entornado”, não apareceu na vila.
Pela noitinha, o Pezinho e o Geno, levantaram-se dos bancos ripados do Jardim, já recuperados da longa soneca,  dirigiram-se para as suas casas, no Bairro de S. Vicente Paulo, para comerem o caldinho e um naco de broa com umas fanecas fritas.
Pelo caminho de regresso a casa, o Geno disse ao seu irmão Pezinho que aquelas sete malguinhas, já “cá cantavam” mas que tão cedo não iria a Vila Chã….

 O Pezinho, olhou para o mano Geno e deu-lhe um abraço pela “vitória” conseguida, concluindo que tinha dado a “volta” ao espevitado Marrucho e ir a Vila Chã, tão cedo, nem pensar…


CANTINHO DOS LOBOS DO MAR

Uma “gaivota “ quase  fisgada…

Carlos Barros



   O relógio  da torre da Igreja matriz marcava a partida das motoras para o mar: três horas da manhã.
   Na travessa dos pescadores, está o acostumado alvoroço nas casas,  com os preparativos para a faina da pesca, mulheres arranjando a “marmita”- Baú- do almoço, com a garrafinha da vinhaça dentro de uma saca de pano xadrez, feita pela costureira Jandirinha, na sua novinha máquina de costura Oliva, de cor esverdeada, anunciando esperança para uma boa pescaria.
   O Saganito já vai à frente em direção ao cais, onde a motora o espera, com a restante tripulação já a calcar a relva da ribeira e a “enxotar” a orvalhada que se colava nas ervas e juncos.




 Mais atrasado o Luisinho - Luis André Eiras- com as suas galochas esverdeadas e o seu casacão de xadrez, acelerava o passo na direção à motora Torrão da Berta Bichesa. O Zé Pereira dos Passos, mais conhecido por  “Zé Tolo” já se encontrava dentro da motora esfregando os olhos  “arremelados”, expulsando o sono que teimava atormentá-lo.
  O Luisinho, que abandonou a escola aos oito anos, era um pescador experimentado, tendo sido tripulante de várias motoras e catraias -Santa Maria dos Anjos, catraia Senhora da Saúde, Rainha dos Anjos, Claúdia Cristina, Senhora do Triunfo, 1º de Abril, Chiquinha e da motora  Marco Filipe do senhor José Nibra. Começou a andar ao mar aos onze anos, ainda uma criança, em que as exigências da vida,  lhe tirou o direito de brincar, como a muitos outros rapazinhos.
   O mestre Luisinho, completou cinquenta e cinco anos de árduo trabalho no mar, sempre com a barra a ameaçar tragédia…
   O Luisinho pescador arguto e corajoso, na motora  Torrão, ia sempre na casa do leme e era homem de confiança de toda a tripulação. Já tinha vivido uma situação trágica, num naufrágio com uma catraia- O Temerário-, à entrada da barra, embarcação do Sebastião, pai do senhor Belemino Ribeiro.      Nesse triste dia, o Lázaro, o Bocage, foi engolido pelas mortíferas ondas do mar,  morrendo afogado. Nesse mesmo dia, em terra, o Café Copacabana, de um vilaverdende, foi devorado pelas chamas, apesar da pronta e corajosa  atuação dos Bombeiros Voluntários de Esposende, comandados pelo João Conde Evangelista. Uma triste e lamentável coincidência em que a tragédia e a tristeza estiveram de braços dados…


  O Torrão partiu do paredão em direção ao mar, com a tripulação ocupada nos  derradeiros  arranjos das redes e linhas de pesca, com o Zé dos Passos já arrebitado, tirando alguma água da motora,  com o “vertedouro”. Chegados ao destino,  toda a tripulação largou as redes, com o Luisinho  direcionando a proa da motora para leste onde a “sonda rudimentar” indicava uns cardumes de peixes.
  No regresso, depois de umas horas de trabalho a largar as redes o Candinho, mais conhecido no seio da classe piscatória  por “gaivota” andou sempre a “pegar” com o Zé,  fustigando-o com ameaças, arreliando-o durante a viagem.
  O Luisinho, homem pacato e de “bons modos”  tinha avisado o Candinho para “acabar com aquilo”,  avisando-o para deixar o “homem em paz”. O Candinho, sempre irreverente continuou a  arreliar o “peguinha, voa a voa”, perante o desespero do Luisinho e este, não está com “meias medidas”, pega no bicheiro para fisgar o Candinho mas, este num gesto rápido e intuitivo, desviou-se e o fisgado foi o Zé no ombro direito.
  Ai que eu morro, gritava o Zé aflito com os anzóis cravados na  “grossa roupa” que o protegia!...


   O Luisinho  deixou o galheiro e tirou os anzóis, enforcados no casacão do Zé que, por felicidade, não tinha sido atingido no ombro contudo, continuava a gritar dizendo que estava  “aleijado” e que queria ir “p´ró hospital!…
   O Candinho, colocou-se na proa do Torrão e nunca mais “abriu o bico” até chegar ao cais, com receio que o Luisinho mandasse outra “bicheirada “, esta  mais acertada…
  O falecido Ilhoca, na poupa, observando as gaivotas que seguiam a motora, ria-se “a perder” perante o desesperado  Zé que só olhava para o ombro “gravemente” atingido…
  “Ai que eu morro, minha mãezinha acuda-me”, continuava o Zé a gritar, mirando o ombro.
   O Zé continuou com a gritaria, protestando contra o Luisinho e só se calou quando no cais, o Ilhoca lhe tirou a roupa e viu que o ombro estava “sãozinho” como uma cereja…
   Entretanto, a motora Torrão foi ancorada e presa pelos cabos no cais e o Zé, com o baú na mão, lá se dirigiu para a rua de S. João onde o esperava a sua mãe, a tia Adelaide já com o “caldo” na mesa e umas fanecas fritas a acompanhar uns parcos grãos de arroz carolino, comprado na mercearia do Abílio Coutinho.


   A noite invadiu o bairro de S. João e todos os pescadores recolheram às suas camas, acomodados aos “colchões de palha”, de vez em quando, acordados pelo despertar de algumas pulgas que se preparavam para “almoçar”,  atacando e pele áspera e dura, dos nossos “heróis” pescadores que raramente acordavam, tal era o cansaço de tanto trabalhar  contra as intempestivas águas do mar.
CANTINHO DOS LOBOS DO MAR


“Por rios, nunca dantes navegados…”


Por Carlos Barros


   Estávamos  em plena época natalícia e era tempo das férias de Natal, momento para as grandes aventuras, com a mente destas crianças da ribeira, viradas para o Pai Natal,  presépio e para as saborosas mas, modestas , prendas no sapatinho.
  Nos anos sessenta e setenta, a “rapaziada”  da  vila de Esposende,  tinha os seus territórios definidos e eram  acérrimos defensores dos mesmos: o Norte e o Sul.  A Central, a Lagoa e o Jardim,  eram “domínios” com pouca presença “militar” e em  momentos “quentes”,  distribuíam-se  pelo Norte ou pelo Sul.
    No território sulista,  imperava o secretismo porque os “altos comandos”, “O Speedy”, Fernando “O Poupinha”, Chico Viana, Chico “Manata”, Mário Trabuqueta e o Gonçalo estavam em reunião, num barraco- Escola Naútica de Esposende- pertencente ao Quim serralheiro.  O “itinerante” e respeitado Quim Tripas, com a sua armadura em cartão duro e uma espada em madeira, de cor prateada, mantinham a segurança ao acampamento. As hostes sulistas receavam  incursões dos nortistas mais belicistas, já que o “renegado” nortista Fernando Quintino, habitante da “fortaleza de S. Vicente de Paulo”,  tinha sido visto a vigiar o acampamento, pelas “bandas” da casa do Fernandinho e da “Minórica”.
   Com “mapas  marítimos”-portulanos, feitos com papel grosso de embrulhar o bacalhau, e rascunhos, elaborados magistralmente pelo cerebral “Speedy”, traçavam-se planos de atuação para a grande
“Expansão Marítima” ao rio Cávado, tentando descobrir-se novas ilhas (torrões no meio do rio) e expulsar as gaivotas e maçaricos que tanto incómodo causavam  a estes ousados exploradores e navegadores.
   Era necessário uma  “Nau” e o  Chico  Viana, levantou a voz dizendo que tinha uma em casa, o que criou “suspense” em todos os navegadores presentes. Em grande correria, o Chico foi a casa, aproveitando a ausência da mãe, que tinha ido à ribeira estender roupa para corar, e na sua sala estava um grande baú que guardava a roupa da família.
Sem hesitar, o Chico  arrancou, com um martelo enferrujado, as dobradiças do tampo do malão, os pregos voaram contra o estuque da parede,  e  a improvisada “Nau” foi trazida às costas, para junto dos seus amigos que estavam ansiosamente à espera da prometida embarcação, a “Nau Chiconeta”-Catrineta-.
   Quando os “navegadores guerreiros” viram a  barcaça,  foi o delírio !
  Quem vai ser o Capitão do Barco, questionou o Mário Trabuqueta, também conhecido por “Faísca”?
   O   Gonçalo , gritou :
- Tem de ser o Quim Tripas que é o mais velho e corajoso e nada como um peixe !
   Meus amigos, é preciso muita corda para prendermos a “Nau”, apelou o  “Speedy” aos seus subordinados,  que estavam a comer umas uvas “surripiadas “ do campo do Emilinho, na noite anterior.
   Passada meia hora, a rapaziada tinha trazido vários metros de corda necessária para o empreendimento marítimo.
  A “Nau”, que tinha sido colocada , junto do campo do Emilinho, foi levada para o cais sul para os preparativos finais. As expectativas eram enormes em descobrir “novos mundos e novas paragens” e cerebral “Speedy”, o “grande Infante D. Henrique”, mandou prender a “Nau” à extensa corda, cheia de nós, à proa “quadrada” da embarcação, cujo casco  era de luxo, já que era forrada ou calafatada com couro grosso tornando-a resistente e impermeável.
  Os aparelhos de navegação limitavam-se, não a um astrolábio improvisado, mas um “quadrante”- quatro navegadores- que  faziam os seus palpites a “olho nu-”.
  O grande “capitão de Mar”, Quim Tripas descalço,  meteu-se dentro da “Nau”, equilibrando-se, e com a maré a encher, lá foi navegando em direção ao “desconhecido” ou melhor, aos torrões .
 A rapaziada no cais, comandados pelo  burguês mercantil,  Trabuqueta, vestido de calça branca, com fidalguia, ia largando lentamente, a corda até que esta “acabou” e a “Nau” começou a balançar perigosamente, contra as ondas do “Oceano Cávado” e o inesperado aconteceu: a “Nau Chiconeta” naufragou e  afundou-se na “fossa de Mindanau- poço do Matadouro- e o Quim Tripas, excelente nadador,  com umas braçadas chegou a terra firme, sendo aplaudido pelos restantes navegadores e guerreiros do clero esposendense.
  Se a minha mãe descobrir não irei ter prendas, neste Natal, no sapatinho, lamentava o Chico!
  Não há problema, disse o ilustre “ Infante D. Henrique”, amanhã iremos descobrir a “Nau” no fundo do rio, e trazemo-la para tua casa…
  O Chico, nessa noite nem dormiu e a sorte dele é que a mãe, Elisinha Alves, ainda não tinha, milagrosamente,  notado pela falta da tampa do baú .
 Pela manhã, o “exército” reuniu, sob o comando do Quim Tripas, recentemente promovido a “Capitão de Barco”  e, com a maré vaza, lá foram  para o meio do rio até ao local do naufrágio. Com tanta sorte, lá estava a “Chiconeta”  enterrada no areal, já cheia de limo e com irões e caranguejas a deleitarem-se sobre o forro de  pele, espreguiçando-se, no cavername  da “nau”.
 A  “Chiconeta” foi transportada para terra, com o Chico  todo sorridente, com a recuperação da faustosa embarcação…
 
 O restante “maralhal” foi para o acampamento para prepararem as espadas e os cavalos para a guerra Norte-Sul que se aproximava.
 O Zé Alberto dispunha de material de guerra moderno, como espadas, elmos e armaduras em folheta zincada, feito na oficina do pai, o que provocava inveja aos seus companheiros combatentes cujo modesto armamento, era feito de madeira dos caixotes do sabão e de latas das salsichas, como escudos. O exército popular dispunha de simples arcos e flechas de vime verde e resinoso, apenas o Armindo “carabina”, dispunha desse armamento, feitos com  varetas de guarda-chuvas, última tecnologia da moda!
 Já  em casa,  a Elisinha, mãe do Chico, pela noitinha chamou-o e disse-lhe:
  Que mala é esta, quem foi que fez isto?
  O Chico  abanou a cabeça e tremendo como “varas verdes” respondeu  que nada sabia…
  Está bem, meu menino, desabafou a bondosa Elisinha, mas eu, nem quero saber mais da história porque senão temos festa aqui em casa…
  O Chico serenou, foi para a cama e dormiu um sono profundo, sonhando com os grandes navegadores portugueses  e com o grande Quim Tripas e “Speedy”, o “Infante D. Henrique de Esposende”, que enfrentaram as sombras das Torres do Ofir- Adamastor-  e as mortíferas vagas do  rio Cávado.
  Nesse ano de mil novecentos e sessenta e um, num tempo de paz e harmonia, com o Natal “às portas”, foram  declaradas tréguas entre o Norte e o Sul, não por muito tempo, porque estas crianças aventureiras e irrequietas,  precisavam sempre de ação e para elas, parar  era morrer!
                                
            CARLOS BARROS
O barco fugitivo,
Por CARLOS BARROS

   No cais norte, muitas peixeiras esperavam pelos “lobos do mar” e, enquanto que estes não chegavam,  seguiam-se gritarias, balbúrdias, confusões, algazarras   e discussões sobre a venda e o lucro  do peixe vendido no dia anterior.
  A tia Silvana, tia Criolice, tia  Genoveva, Inocência, tia Antónia, tia Carolina, Antónia da Galga, tia Ondina, tia Torcata,  tia  Maria Grande, tia Graça, Amélia Pichela do Curico,  tia Cila, entre muitas outras “tias”, estavam todas presentes no cais, sob o olhar desconfiado do guarda-fiscal,  prontas a comprar o peixe, arrematado pelos pescadores das catraias e afinavam a grossa voz. Pareciam “rouxinóis”  enrouquecidos…
   Ao longe, entrando na barra em direção ao “dorso do Cávado”, com a sua “pele” luzidia e azulada de um tom celeste,  as catraias iam chegando, uma  a uma, com a corpulenta Cornuda à frente,  perante a alegria das peixeiras que auguravam, pelo seu semblante, abundância de peixe, especialmente de raias, peixes-sapos, feiticeiras  e muita faneca.
  Com remadas fortes e ritmadas, as catraias acostaram ao cais, com as suas ancoras lançadas para o fundo do rio, bem presas e começa o festival da descarga do peixe com os gigas cheinhas a transbordar de pescado fresquinho, raias a “esbracejar”,  cações a “resmungarem”,  lavagantes e lagostas “espreguiçando-se” nas cavernas das catraias, congros apelando à vingança, peixes-sapos moribundos fisgando o ”infinito”, peixes-rosas com o seu ar angelical, cações  mordendo o ar,  as fanecas coitadas,  já todas com a certidão de óbito, assinadas pelos “moços” das catraias.
    O peixe lançado na rampa do cais, foi logo arrematado pelo Sampaio, tio Miguel e  Muchacho e , passadas umas breves horas, foi todo vendido e colocados nas gamelas das peixeiras para ser vendido em Esposende e aldeias do concelho: Góios, Palmeira, Fão, Marinhas, S.Bartolomeu do Mar, Belinho e mesmo em Forjães, após  longas caminhadas de  quilómetros infindos.
   Estas mulheres corajosas iam a pé a Barcelos, por vezes duas vezes: de manhã levavam sardinha e à tarde faneca e saiam de madrugada de Esposende, às duas ou três horas da manhã, com o sol  dormindo em sono profundo.
  Nessa manhã, a última catraia a ser limpa  foi  a do José dos Passos Pereira, apelidado por  “Zé Tolo”, filho do saudoso Albano P. Laca e da Tia Adelaide, e o Zé era peculiar pelo seu tipicismo e forma de estar na vida. Era um fervoroso adepto do Sporting e do Esposende Sport Clube e, mais tarde, da ADE, um  sócio sempre com as cotas em dia. Era um apaixonado e colecionador  de bandeiras e “galinetes” (galhardetes)..
    Nessa tarde, o Zé  foi vigiar a catraia ao cais norte e convidou o Toninho Rego-António Marques Rego- a acompanhá-lo numa curta viagem pela ribeira, fintando os juncos e os varais com algumas raias  e polvos a secarem  sob  auspicioso sol que se fazia sentir.
  Chegados ao cais norte, o Zé e o Toninho entraram, por mera curiosidade,  num barco de recreio, com um reluzente motor  “Evinrude” , ancorado na rampa , e estenderam-se de barriga para o ar, apanhando os raios solares, bronzeando-se com uma esfregadela de água doce, com limo à mistura.
  Com aquele solinho  relaxante , os dois amigos adormeceram por momentos,   com a maré a  descer-vazar-  e com a embarcação de recreio  a soltar-se das  amarras, sem eles  se aperceberem que o barco  ia deslizando, em direção à barra.
   Num ápice, já com a cabeça atormentada pelo forte sol que se fazia sentir, estes amigalhaços acordaram da soneca e viram-se perdidos, sem  remos e muito menos  leme ou vela !
  Começaram a pedir por socorro e os gritos espalharam-se pela marginal  e a ribeira, como sempre, estava ocupada com jogos de futebol norte-sul, mudando aos cinco e acabando aos dez, com uma arbitragem sempre polémica porque  nesses jogos tinha de haver zaragata, fazia parte dos “regulamentos da ribeira”…Até  a  maçaricada que estava a bicar  no lodo,  levantou-se assustada!
 O tio Laguna do Salva-Vidas, tocou a sineta e os tripulantes do salva-vidas  rapidamente chegaram, em longas correrias.
  Já dentro do Salva-vidas “Vasco da Gama”, os remadores, com  fortes remadas, foram ao encontro do Toninho e do Zé, cuja embarcação estava prestes a entrar no mar. O Tio Laguna  saltou para  dentro do “barco dos aflitos”, amarrou o barco com uma corda ao salva-vidas  e trouxe-o a reboque até ao cais norte.
 Todos chegaram salvos a terra e o Zé, “Peguinha, voa, a voa…” saiu apressadamente do barco, e na rampa do cais, amarrou-o às argolas do paredão, com o Toninho a reforçar os nós, não vá   soltar-se novamente…
   O dono da embarcação de recreio, banhista de Braga,  ficou enriquecido com este novo “currículo”  do seu barco: uma viagem alucinante, rumo ao desconhecido
  O Zé olhou para o Toninho, com os cabelos “eriçados”, pelo pânico , disse-lhe:
- Toninho,  eu não tive culpa., o culpado foi a maré que estava na vazante e pensava que estava na “cheiante”…
 Não há problema , amigo “Zé”, eu não digo ao teu pai Albano Laca pois, se ele soubesse , “dava-te cabo do corpo” e eu não quero que isso aconteça…
 O Toninho Rego era um bairrista de “quatro costados”, de convicções fortes, respeitador, crítico, dedicado e cumpridor e era um excelente cozinheiro e doceiro.
 No dia vinte e oito de janeiro, de mil novecentos e noventa e sete, o Toninho “deixou-nos“ para sempre e Esposende ficou mais pobre com perda deste seu ente querido.
  Esta aventura terminou num silêncio comprometedor entre estes dois amigos e muitos outros esposendenses que souberam desta insólita e surpreendente viagem ,que poderia redundar em tragédia…
 No dia um de dezembro, José dos Passos Pereira, morador na rua 5 de outubro,  dias históricos- 5 de outubro e 1º de dezembro- deixou de pertencer ao “elenco dos vivos”, deixando-nos saudades.
  No “lusito celestial”, estes esposendenses continuam a “navegar” nas  águas serenas do Paraíso, abençoadas pela  ação divina,  norteada pela agulha de marear dos arcanjos.
                                           
Caranguejos à “Luz do dia”…
por Carlos Barros


    O rio Cávado, embora sonolento, despertava e, com  as suas águas límpidas e espelhadas, corria vagarosamente para montante, beijando os juncais, o limo que serpenteava no leito do rio e a bodelha, airosamente dançava, agarrada à penedia que a acorrentava.
   As gaivotas argentíferas espalhavam-se nos areais, atentas ao que se passava à superfície do rio, arregalando os olhos  quando uns peixinhos, ainda alevins, vinham à superfície, provocando pequenas ondulações que se perdiam contra os baixios das “croas”.
    A motora do João Libânio,  “Flor de Esposende” ficou atracada , nesse sábado e a sua tripulação ficou em terra para “arranjar” as redes  contudo,  nesse tempo de penúria social e económica, urgia encontrar meios de subsistência e o Dimas e o João, ainda jovens, eram pescadores muito trabalhadores e não desperdiçavam oportunidades para  pescar no rio ou mar, quando este deixava…
    Em terra também “pescavam” nos quintais onde  abundava a fruta…
    O Dimas –Dimas Sousa Alves Miquelino-e o João da Libânia,- João de Lemos- nessa manhã não foram ao mar e  combinaram uma  pescaria  aos robalos ou aos  negrões que percorriam a  borda  do mar, a umas escassas quatro milhas da costa.
    A embarcação “Luz do Dia”, pertencente ao Tone Fifas -António Pinto de Jesus Nibra- matricula “ES 116 L”, movida por um pequeno e enferrujado motor “Yamaha” de  vinte cavalos, apetrechou-se com uns tremalhos,  já a pedir “aposentação”, vindos de uma  motora  e, na rampa sul, partiu em direção ao mar que estava relaxado na sua imensidão.
    Com a terra a desaparecer do alcance destes porfiados pescadores,  foram lançadas as redes ao mar, e só restava esperar por uns dias para alar os tremalhos na esperança de uma boa pescaria.
    A embarcação navegou, de regresso à terra,  durante  uma hora, aplanando pela  superfície deslizante do mar e sob o olhar de cardumes de cavalas e  negrões que nadavam à tona da água.
   A “Luz do Dia” aportou, pela tardinha, na rampa do sul, com os dois pescadores  animados, perspetivando uma boa pescaria, num regresso ao seio das suas famílias.
  Passados  três dias, os nossos heróis,  pegaram no  barquinho do Tone do Fifas, e com a luz do dia a romper o horizonte, foram alar os tremalhos .
  Já em pleno mar,  as redes  foram aladas, e  milhares de caranguejos, navalheiras  e  algumas santolas “barbudas”,  começaram a entrar no barco e robalos nem vê-los!...
  Meus Deus, que é isto gritava o João para o seu amigo Dimas!
  Estamos desgraçados, isto não dá, nem para a gasolina que gastamos, lamentava  o João da Libânia.
  Maldita hora que viemos para o mar, antes ficássemos na Nazaré a beber umas malgas de vinho, com uns nacos de bacalhau frito, concluía o Dimas, que suava por todos os poros da pele, de tanto puxar pelas redes cheias de “marisco” de terceira.
   Passadas umas breves horas, o barco ficou cheio de caranguejos e a borda da embarcação  estava a  um palmo da superfície das águas e uma breve inclinação era naufrágio pela certa.
  O Dimas, teve que sair do barco no baixio, e empurrou-o cuidadosamente ao longo da restinga de areia sempre “pró“ sul  até à direção da “Casa do Povo”  e, chegado a este ponto de referência, saltou para dentro do barco. Com a vara, o João começou a acionar “o motor” dos músculos e a “Luz do Dia”, atracou na rampa, em frente da casa do sr. Belemino onde o esperava, a Cândida Saganito e a Carmo Fifas esperançadas em vender alguns robalos aos banhistas.
  O Jerones que andava às lagostas nas pocinhas  do matadouro,  veio dar uma ajuda  para desmalhar os caranguejos que não se cansavam de atacar com as suas tenazes serrilhadas as mãos calejadas destes dois amigos.
  O barco mal atracou na rampa, repleta de limo, foi recebido pela Cândida e pela Carmo que ficaram desesperadas perante a mísera  pescaria e desabafaram:
- Meu Deus, quem nos irá comprar estes caranguejos todos?
 Ainda bem que enquanto esperava, peguei numa enxada e num caco e fui à isca e ganhei o dia, com menos trabalho, e fui mais esperta que vocês,  desabafou a Cândida  Saganito para o Dimas e João, de rostos amargurados.
 Coçando a cabeça  o João Libânio  tristonho sugeriu que se levassem umas sacadas destes crustáceos ao Dr. Jorge Moreira e ao Castro da Mercedes de Barcelos que estavam de férias em Esposende para ver se “caia alguns trocos” na algibeira…
  A Cândida foi buscar o seu “Toyota” – carrinho de mão- e encheu-o com centenas de caranguejos  e  foi vendê-los porta a porta, tendo passado pela Havaneza, Berta Bichesa  e o António do Sul que ficaram com umas sacadas de caranguejos para os clientes  petiscarem, com umas cervejas cristal a acompanhar, naquelas tardes de sábado e  domingo, dias de  repouso dos  pescadores.
  Nesse dia, toda a caranguejada foi dada e vendida tendo a Tininha e o Manel Monção levado um bom quinhão. O Manel,  saudoso amigo, foi comê-las ao Marino, bem cozidinhas e com piri-piri a “chamar” malgas de vinho para apagar o calor…
  A Tininha no seu carrinho foi vendê-las a Palmeira do Faro e a Perelhal,  juntamente com margotas, bodiões, salemas e algumas tremedeiras dadas pelos mestres das motoras.
 O Dimas depois de ancorar o barco,  olhou para o João da Libânia e disse-lhe:
- Cunhado, tão cedo não irei  às  caranguejas antes prefiro ir à isca!
 Dimas, sou um pouco resmungão, mas agora estou de acordo contigo, acrescentou o João da Libânia, já de regresso a casa…


09 de julho de 2013 -(entrevistas com o João Lemos e Dimas Miquelino)
 Uma caçada atribulada. 
 Por CARLOS BARROS





   Decorria o ano de mil novecentos e sessenta e três, pela tardinha, junto à igreja Matriz, e a garotada estava já nas suas  aventuras  com o Tonho, Melro e Hilário, este sempre medricas, em plena rua, a imaginarem estratégias para a malandrice.
   Nesse dia, o Tonho não tinha ido às solhas com a equipa dos costume, Carlos da Arranca, Miguéis e o pai, senhor João Calhandra, tudo em família e resolveu  “virar-se para a Natureza”, nas suas habituais aventuras.
   Junto à casa do Tonho existiam duas grandes e frondosas árvores e as flauzinhas, aves simpáticas e irrequietas, dançavam de ramo em ramo, preparando a dormida, uma vez que a noite estava prestes a chegar.
   O Tonho e o Melro, como sempre hábeis caçadores de pardais, pegaram nas suas “afungas” e começaram a atirar às flauzinhas, com aqueles godos redondinhos apanhados na praia ou junto aos materiais de construção.
   Tanto azar que estes rebeldes foram surpreendidos por um GNR que estava  no patrulhamento à caça  “das crianças”…  O agente, de “plainites “sebosos,  pediu a fisga ao Tonho, que estava prestes a entregá-la à autoridade, quando, de repente, o Melrinho,  gritou para não lha dar. O Tonho não teve com meias medidas e começou a fugir pela estrada fora, com o Melrinho num longo “sprint” ficando o GNR todo furioso pela inesperada fuga destas duas crianças sempre irrequietas e aventureiras.
  No dia seguinte, foram chamadas ao posto e quando entraram neste tenebroso e repressivo lugar, o guarda republicano pegou num cinturão para castigar estes infratores. Com um ar ameaçador, o GNR olhou furioso para estas duas “trutas” e mandou cada um deles dar uma chapada um ao outro e, com muito custo, estes dois garotos lá deram a bofetada da praxe. O  Melro, de mão pesada, deu um bofetão mais forte,  ao Tonho e este  ameaçou-o:
  -Lá fora “vais comer” forte e feio…
   Quando iam sair do Posto da GNR, o Cabo perguntou ao praça porque razão aqueles malandros não estavam presos?
  -O agente  respondeu que eles já tinham “levado no lombo…”
  Já na rua, o Hilário juntou-se a estes seus amigos e com a fisga ao pescoço lá foram eles para novas caçadas às flauzinhas, melros e charréus para os campos do Quim da Obra e por entre os silvados, com o Mouquinho a juntar-se  à `”quadrilha” porque tinham de ter caça para o jantar e a fritadeira estava à espera dos pássaros.-
   O “graem, graem…” caça aos melros…, gritava o Mouquinho!
    No regresso o Tonho viu umas “luras” de abelhas e começou a “chuscar” e de repente, o enxame atacou-o furiosamente e o Albano “Penico” que se encontrava escondido, atrás de uma figueira, foi picado várias vezes.
   Os nossos amigos, meteram-se entre os milheirais dos campos do Zão e puseram-se a salvo, depois de tropeçarem  numa grande abóbora.
    Quando todos chegaram a casa pela  noitinha, o “triunvirato” entrou, cada um nas suas casas, com as mãos na cabeça, premiados com “galos” e juraram nunca mais se meterem com as abelhas.
AGOSTO/CARLOS BARROS



Romão, o ”esquiador”…


Por CARLOS BARROS

 A motora  Filomena Antonieta,  com o mestre  João Careca ao leme, regressava  do mar depois de uma boa pescaria e no porão, reinava a boa disposição entre todos os seus tripulantes, sendo dos mais animadores o Romão Miquelino, Alfredo Muchacho e o “Morrossol”, sempre  vítima das brincadeiras do finado Muchacho.
  O sol “espreguiçava-se” e estava quase a desaparecer na linha do horizonte.
  Na motora reinava boa disposição  e as águas do mar estavam amansadas  e “abrilhantadas” por uma serenidade crepuscular.
  O Milo, o “Morrossol” e o Muchacho piscaram o Romão para “esquiar”.
  Anda homem, não és homem não és nada senão ”esquiares”…
  Então, disse o Romão, vai haver agora um espetáculo…
  Toda a tripulação ficou em silêncio e o Milo começou a arregalar os olhos para o amigo “Magnório”, esperando a surpresa!
   O Romão pegou num “paneiro”, cheio de escamas e “langanhos”, atou-o às cordas do arrasto, que estavam presas  à poupa da motora e eis o Romão montado na prancha  de “surf”.
  O “toda a carga”, gritaram os tripulantes para o mestre João Careca, que estava a “milhas” do que estava a suceder…
  Com o motor barulhento e ferrugento da  Filomena Antonieta, a “todo o gaz”, o Romão começou a deslizar sobre as águas do mar, feito turista, durante breves segundos.
  De repente, o motor da motora abrandou e o Romão mergulhou no oceano, até ao fundo, depois de bater com a “mona” na poupa da motora.
  - Morrossol, o Romão  desapareceu,  disse o Muchacho aflitinho…
  O homem está afogado gritou  o Chico! Ele não aparece à tona!...
  Na casa do leme, o João Careca ao ouvir tanto rebuliço perguntou:
  - O que se está a passar aí?
  Vai haver “verdoada” grossa!...
  - O  Romão não aparece e está no fundo do mar, responderam, em uníssono, os tripulantes que estavam a assistir à tragédia.
  - Num último ato de desespero , os pescadores puxaram pelas cordas que amarrava a  “tábua-surf” e lá veio o  Romão  agarrado ao paneiro, já branco e com a boca cheia de areia.
  Uma vez içado para o porão, com muito esforço do Milo e do finado Muchacho,  o Romão  levou uns murros no estômago,  deitou cá para fora uns bons litros de água e começou a abrir os olhos.
   Está salvo, gritou o  Milo “Rosas”, todo contente.!
  Depois  de uns largos minutos de reanimação, o Romão  apareceu ressuscitado e prometeu nunca mais andar de “sequi” com esta tripulação “meia maluca” que o ia matando.
   A motora Filomena Antonieta quando chegou ao cais para descarregar o camarão e  o Romão ainda recuperava as sua débeis forças anímicas.
    As peixeiras, embrulhadas nos seus grossos xailes negros,  no cais norte, perguntaram:
    - João Careca, o que fizeram ao Romão que está branco como a cal?
   - Calem-se “almas negras” que ia acontecendo uma tragédia por causa destes três malucos e só me apetecia pegar no  bicheiro e fisgá-los a todos,  respondeu nervosamente  o João Careca.
   O  Romão  foi “descarregado” no cais e, lentamente, dirigiu-me para  a rampa do cais, cheio de limo, e estava ainda meio atordoado.
   O Milo e o “Morrossol” levaram-no a casa depois de lhe tirarem a areia grossa da boca e dos ouvidos.
     Não digam nada ao meu pai, senão dá-me “cabo do corpo”,  choramingou  o Romão aos seus amigos.
     Podes estar descansado, disseram eles, nós não “abrimos o bico”.
     No dia seguinte, o nosso amigo  Romão, todo aperaltado, com a revista “O último desejo”, emprestada pelo Morrossol”  debaixo do braço, fazendo-se de “doutor”,  foi  passear pela ribeira, tentando-se livrar do grande susto do dia anterior.
    O Romão uma vez na ribeira, sentou-se perto dos juncais e varais, onde estava um polvo a secar, começou a folhear a revista do “Último desejo” que o “Morrossol” lhe tinha emprestado e adormeceu uma soneca, só acordando com o chilrear dos “charréus” que  comiam as amoras das silvas.
     Quando acordou, estava o Morrosssol junto dele e perguntou-lhe:
     Já leste a revista, “ó ranhoso”?
     O Romão olhou para o seu companheiro e respondeu:
     - Sabes qual  era  o “meu último desejo”?
     - Não, disse o “Morrossol” ao Romão  que estava  meio sonolento.
    Olha o meu último desejo, era não te ver mais, desabafou o Romão para o seu amigo… 

Um fadista amachucado…

Por CARLOS BARROS
Foto: FR
   Na década de oitenta, muitos pescadores de Esposende, deslocavam-se para longas paragens, indo pescar para  mares mais ricos em peixes, levando as suas motoras para Sagres,  Sines, Vila Nova de Mil Fontes onde conseguiam  obter maiores proventos económicos na sua atividade piscatória, o que não conseguiam em Esposende porque a barra era “madrasta”.
    Foi o caso da traineira “Flor de Esposende”, recheada de experientes pescadores: João Muchacho, Dimas Paquete, David Curico, João Libânio, Tone Pirata e Domingos da Galga,  que se deslocou para Sagres onde abundava o peixe: tamboril, peixe ruivo,  corvinas, robalo, rascasso….
    O sr. Domingos Moina,  era o  fadista  da tripulação e cantava o fado como um rouxinol e certo dia,  teve uma queda no porão e ficou com uma grande mancha na nádega, torcendo-se com dores e não parava de gritar.
     O Muchacho, sempre solidário, levou o amigo Domingos para o beliche da motora,  onde o espaço escasseava e começou a fazer umas massagens na zona dorida. Com os seus toques de massagista, o Muchacho deu-lhe, propositadamente, uma pancada mais  forte que o tio Domingos, desesperado com dores, bateu com a cabeça nas tábuas da cabeceira do beliche, ficando com um grande “galo” na cabeça.
   O velho Domingos não parava de gritar e com mais uma “porrada” forte do João Muchacho na zona negra da nádega, o acidentado lançou um  novo e lancinante  grito e bateu com a outra parte da cabeça nas tábuas e mais um galo na testa do tio Domingos da Galga que não parava de barafustar contra aquele massagista de “meia tigela” que era o João Muchacho.
   A traineira “Flor de Esposende” atracou no cais em Sagres, após a largada das redes no mar, e a tripulação começou a sair da motora, sendo o último, o tio Domingos da Galga que cambaleando e com as mãos na cabeça, lá ia segurando os galos feitos pelo “artesão” Muchacho.
  Era um dia de Verão e na vila de Sagres estavam muitos turistas e o João Muchacho teve uma ideia genial: organizou uma sessão de fados ao ar livre, sendo o  Domingos Moina o fadista que, por sinal, tinha uma  bela voz.
  O fadista, já com a dor controlada dos galos do “Muchacho” começou a cantar e aquela gente que ocasionalmente passava na praceta, não longe do paredão, onde estava toda a tripulação Flor de Esposende, começou a aglomerar-se e o João Muchacho não perdeu a ocasião e pegou no boné, cheio de escamas de peixe, “langanho” dos congros e começou a fazer um peditório e as pessoas foram às suas carteiras e em pouco tempo, juntou-se muito dinheiro perante a alegria do Tone Paquete, do David Curico e dos demais amigos.
   O Fadista não parava de cantar e as moedas continuavam a cair no boné e o João Libânio incitava o Domingos a cantar mais, para juntar mais umas moedinhas, apoiado pelo Dimas que esfregava as mãos de contente enquanto que o Bertinho ferrava os dentes de  entusiasmo e o Tone Pirata saltava como um “macaco” de alegria com tantas moedas que  continuavam a tilintar.
   Já com a garganta seca, o amigo Domingos Moina, cansou-se e mesmo incitado pelo David Curico e João Muchacho, não  podia mais e só se  imaginava numa tasca a beber umas valentes malgas para  acabar com aquela maldita “secura” no garganil!
    O João Muchacho, com as moedas e notas, bem presas no boné, levantou a voz e deu por acabado o espetáculo perante inúmeras palmas dos assistentes que não se cansavam de aplaudir o grande fadista Domingos Moina que já suava por todos os poros da pele, nunca mais se lembrando  dos “galos” oferecidos pelo Muchacho…
   No final,  a tripulação da “Flor de Esposende” foi toda em direção à tasca e mandaram vir umas malgas de vinho tinto, acompanhadas com bacalhau frito e umas iscas e  permaneceram lá durante duas horitas, tendo o Tone Pirata bebido mais que os restantes amigos.
  As malgas de vinho  pareciam que voavam… O Tasqueiro trabalhou mais nesta parte da tarde, a dar de beber a estes sequiosos esposendenses, que durante a semana toda,  afirmando que esta gente de Esposende bebiam como “camelos”…
   As moedas recolhidas pelo João Muchacho deu para pagar toda a despesa e ainda sobrou para comprar uns cigarros, mais baratinhos,  “Três Vinte” e “Provisórios” para o Tone Paquete e Domingos fadista enquanto que o David Curico, ficou mais caro, porque  só fumava cigarros com  filtro: SG Ventil ou Estoril.
  Com as redes “largadas”, durante a noite, a tripulação da “Flor de Esposende” teve um final de tarde muito feliz e na tasca, já com uns copos entornados, o Domingos Moina, cantou mais uns fadinhos mas, a letra estava toda “embaralhada”  e a confusão da música levou  a que todos regressassem às suas ”casas”- porão da motora- porque todos tinham de se levantar cedinho para  alar as redes, durante a noite que se previa friorenta.
  Às duas horas da manhã, estes corajosos pescadores estavam todos a pé, em direção às motoras que estavam ancoradas no cais e lá partiram, numa manhã serena e com o luar ainda a despontar, todos alegres e sorridentes com o Domingos  Moina na casa do Leme a entoar uns fadinhos, mas em silêncio porque a voz não dava para mais…
História contada pelo João Muchacho, no dia 20 de fevereiro, pelas 11 horas da manhã, junto ao Bairro Sucupira-Esposende.


“Vamos às solhas!...”.



A primavera batera “às portas” da vila de Esposende e, numa  pujante manhã,  a vida começava a despertar para a faina diária e a “criançada” saltou da cama, atraída pela manhã primaveril que a natureza presenteava, como sempre,  os esposendenses.
 Numa casinha simples, térrea  e acolhedora, a norte de Esposende, perto da igreja matriz, junto ao lavadouro público, a  Rosa peixeira já estava a pé e os filhos- Carlos,  Tone…- já se encontravam bem acordados, pelo “despertador matinal”  que era o chilrear dos tordos e da outra passarada que se tinha instalado, com a sua orquestra, nas palmeiras da casa dos padres.
Vamos rapazes, todos para o tanque lavar a cara e está um belo dia para ir  às solhas,  disse a tia Rosa, já prontinha para  recolher os chicharros e vendê-los, no cantinho das sete moléstias.
 Num ápice o “exército” foi organizado  com o Carlos Bicho, como “general” das tropas, com os seus “soldados,”  Tonho, Tone Bichesa e o Miguéis,” O Azar” e,  todos eles, pegaram  nas redes das solhas (redes do bucho), que estavam no corredor da entrada,  foram para a zona do Hotel Suave-Mar, fazer os “lanços” iniciais.
Quando ia o João Calhandra, o Carlos  Bicho perdia o “posto” e quem comandava as” tropas” era o sr. João, pessoa muito afável e respeitadora.
Estes  jovens  pescadores, sem  apoio do barco, percorriam o rio todo  lés-a-lés, até à ponte de Fão e nas lages, perto desta  ponte, nos torrões, as solhas estavam acamadas, e a rede enchia-se  rapidamente, sendo guardadas num saco grande de linhagem, dado pelo Abílio Coutinho, do seu armazém de cereais.
No rio, a azáfama começava a eclodir e uma vez a rede esticada,  começava-se, a bater no fundo do areal, com as varas,  para as solhas irem ao encontro da rede que as aprisionava.
Estamos todos “partidinhos” queixava-se o “Azar”,  para os seus amigos, todo molhadinho e já cansado de lutar contra a  fria corrente do rio, já que a maré estava a encher.
O Tonho, sempre  a resmungar,  ameaçou que à tarde não viria outra vez às solhas porque  tinha um jogo na ribeira contra o sul e logo “à croa”!...
 O Carlos Bicho deu um grito à rapaziada:
- “Caluda”, seus malandros vamos mas é trabalhar porque a mãe já está com o caldo de farinha  na mesa e nós aqui na moleza…
As solhas foram todas trazidas, de barco, da ponte de Fão para casa, com os sacos recheados e quando a  tia  Rosa viu aquela pescaria desabafou:
-Meus filhinhos, que grande pescaria! Vocês merecem um prémio, pois vou, amanhã, ao  Marino comprar-vos uma bola de futebol e um pião ao Abílio Coutinho !
O Tonho ao ouvir a mãe a falar de bola deu um salto e foi contra  o guarda-louça, que  quase ia  partindo,  uma malga, comprada na louceira.
As solhas foram espalhadas no chão e contaram-se setenta dúzias que foram vendidas à Inocência da Pelada - mãe do Quico, João Careca, Zé Fofó..-, a  vinte e cinco tostões a dúzia.
A tia Inocência ia a Barcelos e a Braga de “caminheta”  vender essas solhas e só regressava a casa, na camioneta do Linhares, pela tardinha, com a algibeira  repleta de notas de vinte escudos e algumas de cinquenta, sem contar com as  muitas moedas que tilintavam ao ritmo largo da passada da tia Inocência.
Nas redes chegavam-se a malhar sáveis e lampreias que eram vendidas à tia Churra- Maria de Saúde Lemos- a cinco croas e esta peixeira deslocava-se muitas vezes, a pé, ao Castelo, pela praia buscar o pescado na sua gamela de madeira,  para vender pelas aldeias, chegando a ir a pé a Barcelos, onde as suas clientes a esperavam.
Estes “famosos pescadores” de solhas chegavam a levar  o João Café e o João Conde com eles para o rio,  e no final da pesca, também levavam o seu “quinhão”.
Estes pescadores quando saíam do rio, estavam sempre à espreita  porque o Lázaro da Delegação Marítima não perdoava a multa que era de cinco croas e quando eram surpreendidos,  fugiam e punham o peixe fora ou escondiam-no no meio das silvas da ribeira. Quando  não iam às solhas, estes corajosos rapazinhos, iam apanhar guita para a pancada do mar que, na altura, dava bom dinheiro: quarenta escudos, o quilo-.
 Essa  “guita”-tipo de algas marinhas- transportada em carrelas, era seca, na ribeira e nos  campos, e vendida ao quilo para fabrico de produtos farmacêuticos e plásticos.
O Romão Miquelino, sempre astuto e aventureiro, ia à ribeira onde a guita estava a secar e “roubava” umas manadas para vender e comprar cigarros que fumava às escondida dos pais e na Páscoa, este “mariola” passeava de cigarro, geralmente provisórios ou definitivos, pelo paredão, longe dos olhares dos amigos que o poderiam denunciar. Era o Romão , “no seu melhor”!... Foi empregado da Nélia e  chegava a deslocar-se de “toiota”—carrinho de mão- ao Ofir, levar grades de cervejas, pirolitos e uns garrafões de vinho e, quando a sede apertava, em pleno Verão, o Romão, à sucapa, com o dedo mindinho,  empurrava o berlinde do pirolito para baixo, e saia uma bufada de gás, e toca a esvaziar um pouco do líquido “alimonado” pela “goela” abaixo.
Ingerido o pirolito, forças físicas eram revigoradas e a viagem tornava-se mais rápida! Os “deuses” não o denunciava mas, que havia reclamações pelos “defeitos” dos pirolitos, era um facto!...
Para além destes pescadores de rio, o tio Zé Pirata era também um pescador de solhas experiente e não gostava nada ver no rio aquela “cambada”  que se fartava de apanhar solhas…
Nesses tempos, o Álvaro Li, Zé Bebado, Tio Cálica e o tio Alfredo Fá também dispunham de  redes de bucho para as  solhas e faziam  boas pescarias.
O  nosso rio Cávado  sustentava famílias de pescadores  que pescavam algum pescado-  solhas em abundância, mujos-erigos, barbos, robalos, sáveis, enguias, “carangueijas” ,  lampreias…- com as  corajosas peixeiras – Tia Churra,  Silvana, pai do Pezinho,  tia Graça, tia Antónia da Galga- a deslocarem-se a pé às aldeias percorrendo  vários quilómetros até  Barcelos, para venderem o peixe. As contas eram feitas com feijões, com processos matemáticos rudimentares mas, rigorosos e o lucro era distribuído no fim das vendas, após  salutares discussões e regateios…Essas peixeiras  eram “economistas” rigorosas  que  deviam fazer inveja aos nossos políticos, dos tempos atuais…
À tarde, o sol convidava a uns mergulhos nas escadinhas  e o  Tonho, Carlos Bicho, Azar e Tone Bichesa, de cuecas , lançavam-se  em voo picado para as águas serenas e amenas do Cávado.  Os “calções de banho” improvisados, eram secos ao sol, sobre as silvas e varais e, posteriormente, os nossos amigos  iam para casa em grande correria,  “comer o jantar”, uns chicharros fritos com batatas cozidas, molhadas com pouco azeite, comprado na mercearia do Coutinho ou na Lucas e umas côdeas de pão de milho.
As lavadeiras,  recolhiam  a roupa que estava a corar sobre a erva e os arames improvisados e  regressavam  às suas casas, muito apressadas porque os filhos esperavam pelo “caldo” e algum “prezigo” milagroso…
Quando os tordos e os “Charréus”, pela tardinha, começavam a  chilrear nas palmeiras da Casa dos Padres, era sinal para  todos irem para a cama, onde dormiam todos juntos,  armazenando novas energias, para  as acostumadas pescarias  às solhas para o dia seguinte.
Chegava o silêncio da noite , a Igreja Matriz silenciava os sinos, o  sacristão ” Biomiro”, alfaiate de profissão, apagava as velas dos altares, fechava as portas da igreja e regressava à sua casa para o justo descanso.
Uma lavandisca perdida na rua, levantava voo para destino incerto, fugindo ao ar frio que começava a atormentar a noite.
Entrevistado: Manuel Carlos Vilas Boas Cardoso
Dia 12 de março de 2013
Peixaria Rosa- 10.30 horas   

O afogado que ressuscitou…



        O Verão, no dia quatro de agosto,  de mil novecentos e sessenta e quatro, chegou à então pacata vila de Esposende, com todo o seu esplendor, com muito sol e uma temperatura ideal para a praia e para  uns  mergulhos no rio, junto às escadinhas, perto  do  Salva-Vidas.
        O rio era a piscina natural da criançada, sempre pronta  para os mergulhanços  da ordem, longe dos olhares dos pais.
        Com o rio a beijar o sol, aperfumado, por uma ligeira brisa, alguns pescadores  “foram para a vida”, lançando as redes das solhas para as águas do Cávado que ainda estava adormecido, e que “acordara” com o barulho do chapinhar dos pés dos jovens pescadores.
        O Zé Pechichola, tendo como companhia o “Atita”  tinha saído de casa todo apressado, com um saco de serapilheira às costas, para  umas surtidas às croas-areais- para fazer uns lanços com a rede das solhas.
Já nas “croas”, repletas de assustados maçaricos e andorinhas do mar,  estes dois amigos lançaram as redes, fixas  num pau e começaram a  sua faina levando a rede para um local do rio mais fundo.
        Com a água pelo  pescoço o Pechichola começou  a bater com a vara no fundo do areal, empurrando as solhas que deslizavam inadvertidamente, para as redes.
 Na rampa do cais sul, encontrava-se uma catraia ancorada-amarrada-, e o Quico do Arroz- Francisco Domingos Ferreira da Cruz, vindo recentemente de férias da França, resolveu, em calções, dar um mergulho no baixinho mas, esse baixinho tornou-se fundo-fundão-,  e com um pé em falso, o Quico caiu ao rio desamparado.


        O Quico do Arroz, que sabia nadar muito pouco, começou a esbracejar aflito porque já não tinha pé e desapareceu das águas, empurrado pela vazante da  “corrente”.
        O Pechichola que observava esta cena, foi de imediato em socorro do  amigo, e ainda conseguiu segurá-lo, por uns segundos, mas teve que o largar porque  já estava prestes a afogar-se, embora nadasse como “um peixe”.
        Começaram os gritos de socorro e o Fernando Rosário que estava no cais pegou num barco, com o Dimas, remando com  uns improvisados remos, “paneiros”, foi socorrer o Quico do Arroz que já tinha desaparecido das águas cristalinas do Cávado.


        Entretanto, os Bombeiros foram avisados e a ambulância, a bela mas lenta Chevrolet, chegou num ápice com os “soldados da Paz” , em direção à ribeira, já com muita gente aglomerada, entre eles, o Carlinhos da Jandira,  o Tarrio, o Nibra, Augusto, Tachi, Paulo Fá, Mário da Barrega, David Miquelino, Zé Pancas, Armindo Murraca, Zé Conainas, entre outros, que interromperam um jogo de futebol que se estava a realizar na ribeira, em frente da Faustina, a “cinco croas”.
        O Quico do Arroz foi arrastado pela corrente, até às escadinhas perante os gritos e aflição da criançada que assistia a uma iminente tragédia.
        O Orlando Russo, sempre homem destemido, que se encontrava no cais a pescar à cana, com o seu velho Sagarra,  mandou um mergulho para as profundezas das águas límpidas do nosso rio e conseguiu agarrar o Quico do Arroz e trazê-lo à superfície, agarrando-o firmemente pelo pescoço.
        O Quico mostrava poucos “sinais de vida” e urgia prestar os primeiros socorros de reanimação.
        O Quico foi transportado para a rampa sul e os bombeiros  fizeram a reanimação e o genro do senhor Porfírio, que estava a estudar Medicina, João Hildeberto B. Osório de Valdoleiros, casado com a professora Guiomar, estava presente  naquele momento no cais, e ministrou uma injeção ao “Quico” que foi imediatamente transportado para o Hospital Valentim Ribeiro, onde conseguiu recuperar , salvando-se “in extremis”.
O povo dizia que uma injeção, nestas situações de morte, chamava-se “injeção do desempata”…


        O Quico  confessou ao “BÓIAS” que teve consciência que iria morrer  e tinha largado o braço do Pechichola, sua derradeira bóia de salvação, porque não queria que ele também morresse afogado, soltando-o no derradeiro  momento.
        O Orlando Russo foi um amigo de coragem, tendo arriscado a vida para salvar o seu amigo Quico do Arroz que, felizmente, ainda vive em Esposende, convivendo com os seus amigos na marginal ou  junto à igreja Matriz, em conversas amenas com o amigo Sotero- jogador de futebol-, uma  “velha glória” do ESC.
        Para o Quico do Arroz, os mergulhos acabaram para sempre e banhos só na banheira em casa…


                                             “ Os frangos voadores”


   A barra de Esposende estava cada vez mais perigosa e o processo de assoreamento tinha sido galopante, no início da década de oitenta, em ritmos instáveis  e as motoras  não dispunham  de condições  para   entrarem nessa barra, sempre traiçoeira.
   Os mestres das motoras  e respetivas  tripulações esposendenses, tiveram que  se deslocar para outras paragens, onde o pescado era mais abundante: Sagres, Sines, S. Martinho do Campo e Peniche.
  Pescadores como o Pesinho, mais conhecido por “Tinoca”, “Pechichola”,  Santos, Serafim, Candinho “Gaivota”, Manel da Galga,  Rogério Chana, Lano, Milo, Chico da Inocência, João Careca Tone Paquete, Tone Pirata, Alfredo Muchacho, Batista da Galga, Armindo “Murraca”, Augusto “Furrica”, Agostinho e muitos outros,  deixaram os seus lares e respetivas famílias para lutarem pela sobrevivência, em águas onde abundavam as lagostas, lavagantes, peixes-galos, solhões, tamboris, pregados, congros, raias, salmonetes, besugos, lulas, polvos, santolas, pargos, corvinas, robalos e muitas outras espécies de pescado. Nas redes-redinhas-o peixe ficava enrufado-malhado- em grandes quantidades e nas “albitanas” ficava o peixe mais graúdo, precisamente o mais valioso.

   No mercado e na lota esse pescado dava muito dinheiro para alegria dos pescadores.
  Trabalhava-se muito, como dizia o Santos, tripulante da motora Santa Maria dos Anjos mas, ganhava-se bom dinheiro e os pescadores viviam nas próprias motoras, que era a sua habitação, com condições difíceis de alojamento, onde a higiene e a comodidade eram precárias .
   Comia-se dentro das motoras, fumava-se (O Atau era um perito a fumar e  intoxicava a vizinhança…)  trabalhava-se e descansava-se um pouco mais, no fim de semana, onde  os pescadores iam a terra, beber umas malguinhas e umas cervejas nas tascas e alguns “Pubs”, para atenuar a solidão, existente no seio das tripulações.
   Em 1982, na motora Santa Maria dos Anjos, tendo como mestre o Serafim Coutinho, o Santos com os seus trinta anos de idade, espraiava a alegria e a boa disposição no seio dos amigos: o mestre Serafim, os manos David, Zé, Né e Tone Miquelino, o Manel da Galga e o “impetuoso” Batista.
 As pescarias eram boas e comia-se, como é natural, peixe fresquinho, cozinhado pelo  Santos, num fogão improvisado de “duas bocas”.
  Numa outra “motora”, denominada “Jesus no Jardim”, (Quico da Inocência,-mestre-, e os tripulantes Agostinho do Cocho, Tone Paquete, Manel Pesinho, Rogério, Alfredo, Augusto e Zé) com os seus dezasseis metros de comprimento, movida por um potente motor Ford de “cento e trinta e cinco cavalos,” reinava o entusiasmo e o mestre Quico  tinha decidido que haveria frango para o almoço e quem tinha ficado em terra para comprar esses  frangos,  precisamente o Manel Pesinho, acompanhado do seu velho comparsa Tone Pirata.
   A motora, no regresso ao cais viu o Pesinho e o Tone Pirata, carregados de frangos, estando a tripulação toda entusiasmada porque nesse dia, não iria comer o habitual peixe e o Tone Paquete mais alegre ficou, ao saber que não cozinharia caldeirada  para aquela gente toda.
   O Pesinho, pelo aspeto, aparentava passagens por muitas tascas: Zé Manel, Jacinto, Pescador, Chico Marreco…- pois, andava ao “zigue zague” ou melhor, estava como um “nabo”, como afirmou o Santos que assistia, no cais, a esta interessante cena recambolesca.
   Como é natural, o Tone Pirata, cliente assíduo da Tasca do Zé Vicente, “Altinho”, estava no mesmo “estado entornado” que o Pesinho que cantava canções desconexas, inventadas pela sua  veia poética, cheirando a vinhaça que transava...
    Ao aproximar-se da motora, o Pesinho disse que ia lançar os frangos para dentro da motora, que se encontrava quase atracada, perante o apoio entusiasta do Tone Pirata que incitava o seu amigo a lançá-los com força.
    A poucos metros da embarcação, o Tinoca, com um grito de guerra “iá..iá…iá..”, lançou os frangos pelo ar que pareciam “gaivines” depenadas, esvoaçando contra a ventania que se fazia sentir e, com tanto azar, a mira falhou e as “aves “ foram cair  ao mar, perante o desespero dos tripulantes que viram os “frangos”  mergulharem nas águas salinas e espumadas, perto do cais  mas, milagrosamente,  logo vieram à tona...
   O amigo Pesinho, pouco conhecedor das leis da física, não contava com a força da ventania de sudoeste, o que fez desviar os frangos na direção errada…
   O Rogério “Chana”, especialista a fisgar lampreias, irmão do Lano, filhos do falecido  Rogério, pegou rapidamente no “bicheiro”, que se encontrava sobre a cabine da motora e começou a fisgar os frangos, um a um, e conseguiu salvar o almoço!...
    Os tripulantes da motora ”Jesus no Jardim” rogaram pragas ao Pesinho, chamando-lhe os habituais “palavrões”, que não constam no dicionário contudo,  o ”Tinoca” cambaleando, conseguiu entrar na embarcação, encostando-se à cabine depois de uma  escorregadela no viscoso convés.
   Toda a tripulação comeu um saboroso arroz de frango, cozinhado pelo  mestre–cozinheiro  Tone Paquete enquanto o Pesinho dormia  como um “porco”  e só acordou às tantas da manhã, quando o sol, já rompia o horizonte.
   A embarcação “Jesus no Jardim”, sob o comando do experiente mestre Quico,  ia começar mais uma faina no alto mar e com toda a tripulação preparada, apareceu, saindo do porão, o Pesinho e, levantando a sua “tenebrosa e esganiçada voz”, perguntou:
- Quando é que comemos os frangos?
 Toda a tripulação numa berraria,  em uníssono respondeu-lhe:
- Olha Tinoca, morreram todos ”afogados” e estão no fundo do mar e para a próxima vez,  bebe menos…
     A embarcação entrou em pleno mar, com toda a gente bem acordada, e foram mais umas horas de trabalho árduo, tendo os audazes pescadores de Esposende, largado as redes e tremalhos para as “entranhas “ das águas, com a convicta esperança de uma boa pescaria, o que viria a acontecer.
Entrevista  com o Santos,  Francisco , Rogério “Chana”.
Dia 13 de março e 16 de abril de 2013 no café Oliveira-11 horas, e café Cine-22.00 horas-e no café do  Mercado – 16.30 horas-.Esposende

 O tio David,  turista...!

   Estavamos no mês de janeiro, em mil novecentos e setenta e oito e,  em Esposende, os pescadores já estavam na faina da pesca à lampreia, com rede, bicheiro,  galheiro ou rede, com a  “estacada”  em descanso, junto à foz com  as suas lanternas a iluminar a superfície das águas, procurando o tão desejado ciclóstomo.
   O Santos, filho da Delfino Ceareiro e da tia Maria Fifas,  e o Tone Miquelino, filho do Miquelino e da  tia Adelaide,   “lampreieiros” astutos, estavam na foz com os seus galheiros e já tinham apanhado uma “manada” delas, colocando-as  dentro de uma saco de malha, fechadinho não fosse o cão, caça-lampreias  do  Lima roubá-las, um canino treinado  nesses “desvios”….
   O Tio David era uma velha “raposa “ do rio e  pescava , nesta época,  lampreias mas, ultimamente andava um pouco em descanso, e não estava prestes a “vergar a mola” porque a vida são “sete dias”, como dizia o velho e  manhoso  mestre David, que era um pescador especial, perito na pesca dos irões e das solhas.
   Nessa manhã, o Tone Miquelino,  viu o tio David com a” ponteira” às costas e perguntou-lhe:
  Para onde vai Tio,  com a ponteira, feito turista, num dia tão bom para apanhar irões nos carreiros?
  Ó  tio David,  você é que é tolo , vir a esta hora apanhar lampreias, neste sítio que não tem dado nada e  já sabe que  não tem paciência para andar à lampreia, acrescentou o Santos, rindo-se para o Tone Miquelino que lhe piscava o olho!
   Olhai seus “marmelos” vocês não percebem nada disto e sabem porque venho com o galheiro às costas, seus morcões?
  Não, não sabemos responderam  prontamente os dois amigos ao tio David que estava fardado à pescador com botas de água, verdinhas e  com um grande casacão de xadrez.
  Eu vou explicar, dizia ele: Eu gosto muito de “cozido à portuguesa” e a minha mulher quando me vê  ir  à lampreia , vai-me buscar logo um “cozido à portuguesa” ao Zé Arménio e é por isso que venho com a “ponteira” às costas para” fazer de conta”,  porque o galheiro fica a descansar nas dunas, perto do bar da praia.
  Eu quando chegar a casa , meu sobrinho Tone, o cozidinho vai estar na mesa e vou comê-lo  que me vai saber tão  bem, respondeu com ar  de convencido o tio David!
  Passadas umas horas, o Tio David regressou a casa e a mulher perguntou-lhe pelas lampreias e ele  muito atrapalhado e a gaguejar , disse-lhe  que o mar estava a descabeçar-vazar- e as lampreias tinha ido todas para o mar e  foi uma manhã  “lisinha”…
Eu até chorei,  podes crer mulher!...
   Ó homem, não faz mal, anda  mas  é  comer o “cozido à portuguesa “que já está na mesa, com um copinho de vinho Felgueiras, comprado no Areias. Vai-te saber pela alma mas, atenção, ameaçou a mulher do Tio David:
- Para a próxima vez que não trouxeres  lampreia, não há “cozido à portuguesa” e não me venhas com desculpas ameaçou a mulher do tio David, em frente dos filhos que já estavam à mesa a comer o “caldo” com umas iscas de bacalhau, compradas na Nazaré, e arroz, um pouco estorricado.
O Tio David, pensou, para os seus botões:
P´ra próxima não  me “safo” e tenho que trazer  umas lampreias à minha mulher,  nem que as  tenha de roubar aos Santos ou ao meu Sobrinho Tone Miquelino!...

História contada pelo
Santos Coutinho, no dia 20 de Fevereiro de 13,
 pelas 11.35, horas no Café Oliveira-Esposende..
CMLB

Carlos Barros - Cantinho dos Lobos do Mar




Um turista, azarado…



   Estavamos no ano de mil novecentos e sessenta e dois,  quando numa tarde de verão,  a  motora Filomena Antonieta, com o mestre João Careca-João Pinto Loureiro- ao leme,  lançou-se ao mar, que se encontrava calmo, no arrasto ao camarão.

  Com o mestre seguiam os seus tripulantes: Alfredo Muchacho, Tonó, António Cabeludo, Tino Fangueiro, Romão Miquelino, Tone Pirata, Rodolfo “Ilhoca”, Milo Barros e Alfredo “Morrossol”, uma equipa de pescadores de respeito onde o Morrossol tinha de fazer continência ao Muchacho, caso contrário ia vassourada  no lombo, isto nos momentos de boa disposição. O Muchacho chamava ao Morrossol por Cornélia, título de um programa televisivo desses tempos.

  A motora, à saída da barra,  dava a força toda e a ferrugem do cano de escape era aproveitada para o Milo e finado Muchacho, para  pintar as caras de alguns tripulantes mais brincalhões.

  Quem quer ser o Jordão, dizia o Milo para a restante “cambada”? Temos aqui ferrugem que chegue…

 A tripulação, na zona costeira trabalhou bem, durante algumas horas no arrasto ao camarão, na “purbeira, no “lares”,  no forcadinho , locais perto da costa  que eram  referências para os pescadores.

  A “safra” no final da pescaria foi bastante boa: lavagantes, lagostas, santolas e camarão da costa, bem graúdo.

  No regresso ao cais norte,  na motora, sempre com o  respeitável mestre João Careca ao leme, reinava a boa disposição, com o Tio Muchacho sempre nas brincadeiras,  com o Milo a ajudar à festa e a vítima era quase sempre o Morrossol que não podia “levantar muito o cabelo”…

   Chegada ao cais, a Filomena Antonieta descarregou o pescado, sendo colocado num gingão para ser vendido, já por encomenda, para a Póvoa de Varzim, ao comerciante José Reis, homem de negócio, muito sério e simpático.

 Os nossos pescadores também vendiam o camarão à Zeza da Carqueja mas, esta negociante não era muito bem vista por eles porque ela enganava-se muito no peso do  marisco…

   Na sua mercearia, quando os pescadores vinham com o  marisco, este era posto, pelo Zé Reis , em viveiros, no mar,  para mantê-lo vivinho-lavagantes, lagostas…. O Zé  Reis  oferecia  presunto e umas garrafas de vinho à tripulação e que,  rapidamente, ficavam vazias, apenas, o Milo, bebia sumol ou “Canada Dry” ou mesmo  pirolito, isto nos dias mais quentes.

   Nesta casa comercial, trabalhou a senhora Maria do Rites, mãe dos nossos amigos esposendenses dr.  Fernando Rites e seu irmão, Rogério  Rites.

    O Alfredo Morrossol foi o encarregado de levar o  marisco ao José Reis, à Póvoa de Varzim, num gingão, com panos grossos e encharcados por cima, e deslocou-se na camioneta do “Cascão Linhares“, conduzida pelo “Joaquim das Camionetes”.  O escritório do Linhares era em frente dos Bombeiros velhos, sendo os seus funcionários o Abel da ”Batata” e o António Pinto que vendiam os bilhetes e responsabilizavam-se pelas encomendas.

    O Morrossol, com a sua roupa de pescador, lá foi na camioneta descansadinho e quando chegou à Póvoa, deixou o marisco em casa do José Reis que lhe ofereceu uma boa malga de vinho e uma posta de bacalhau, ficando o Morrossol bem “compostinho”…

   O José Reis pagou mil e duzentos escudos pelo marisco e com tanto dinheiro o amigo Morrossol teve um “ataque de desonestidade” e pensou:

 - Tenho a minha família em Lisboa e com este dinheirinho, uma “pequena fortuna” para a época, vou fazer uma visita de surpresa à minha irmã,  pensou o amigo Morrossol, já com as notinhas a aquecer nas mãos calejadas do mar.

   Comprou o bilhete de comboio  para o Porto, para a estação da Campanhã, e lá foi o “turista” no comboio para a cidade invicta, desejoso  por chegar a Lisboa.

   Entretanto, o gingão e os panos tinham chegado na camioneta do Linhares, e o Augusto Guimarães, homem muito sério,  antigo polícia e engraxador da Nélia, em Esposende foi entregar a encomenda ao João Careca  e restante tripulação, que estava à espera do dinheiro, para se distribuir o “quinhão” por todos.

Então onde está o dinheiro, Augusto, perguntou o João Careca!

A mim, não me entregaram nada, respondeu o Augusto todo aflito!.

Há bronca pela certa, responderam alguns pescadores da motora.

Será que o Morrossol ficou com o dinheiro, questionou o Muchacho.

   O Tonó, António Chicho e Alfredo Muchacho  alugaram o táxi ao António Marques Henriques e  a toda a pressa,  foram à Póvoa de Varzim, dirigindo-se à casa do José Reis à procura do Morrossol.

   Zé , o Morrossol  esteve aqui, perguntou o João Careca!

   Ele entregou-me o marisco, dei-lhe o dinheiro e foi-se embora respondeu o Zé Reis, com  a maior naturalidade, acrescentando que o viu numa uma loja de roupa de vestir, perto do seu estabelecimento comercial.

   Desconfiado, o  Tonó, sempre espertalhão e desconfiado, perguntou com a sua “tenebrosa” voz:

-Será que ele foi para Lisboa visitar a irmã?

  Malta, vamos à estação da Campanhã que o “marmanjo” deve estar lá, pronto a partir, disse o Tonó, gesticulando com ares ameaçadores…

  O táxi na velha estrada número treze, a toda a velocidade, chegou à estação da Campanhã e lá foram à procura do “turista”.

  O comboio para Lisboa não tinha chegado por sorte da tripulação, e, sentadinho de fatinho branco, calças vincadinhas sapatinho branco, à “brasuca”, óculos de sol e com risca ao lado, lá estava o Morrossol à espera do comboio.

  Então que estás aqui a fazer na estação, perguntaram os seus amigos da motora!...

  O Morrossol ficou  branco, sem fala e, gaguejando, respondeu:

- Eu perdi a cabeça e ia para Lisboa visitar a minha irmã e já tenho aqui o bilhete disse o Morrossol, com o ar amedrontado.

 Desgraçado, anda à nossa frente para Esposende que nós iremos vender o bilhete, o que conseguiram, após

 alguns contactos na bilheteira com os passageiros que estavam na fila para comprarem bilhetes para os vários destinos.

  Onde está o dinheiro do marisco, perguntou o Muchacho enfurecido com os dentes ”arreganhados”, ao Morrossol?

  Ó meu irmão, gastei-o quase todo na roupa e nos sapatos…

  Ò desgraçado, vamos embora e ainda hoje vais ser morto, ameaçou o Tonó, com o punho fechado.

  Durante a viagem o Morrosssol ouviu das “boas” com algumas ameaças de umas “verdoadas” no “cachaço”-

  O condutor António Marques Henriques lá ia ouvindo aquela discussão dentro do carro e, pelo retrovisor, contemplava “o turista” bem vestido, franzindo o ”sobrolho”….

  Quando chegaram à praça de táxis, junto ao largo dos peixinhos, saíram todos, com o Morrossol, todo “pinote” mal ele sabia que quando chegasse a casa, iria ficar sem a roupa toda, o que, aliás, veio a acontecer.

   O Chico ficou com a camisa, as calças e o casaco foram distribuídos pelos amigos,  ficando o Morrosssol com a roupa da semana, triste e azarado na frustada aventura para Lisboa que foi interrompida quando menos esperava…

   O Morrossol prometeu pagar a dívida, o que veio a acontecer,  mas a confiança tinha acabado para com a tripulação da Filomena Antonieta.

  O Morrossol, agora  mansinho como cordeiro, continuou na Filomena Antonieta com a restante tripulação e com a dívida paga, a vida continuou e, na motora, a boa disposição  regressou.



“O cantinho dos lobos do mar”

         Carlos Manuel de Lima Barros

                 22 de janeiro de 2013



Trabalho para o mês de fevereiro-Blog- 2013




O Milagre da “robalada”…
Mestre Belemino Ribeiro
    Em Esposende, numa tarde de julho, de mil novecentos e sessenta e dois, com o sol “conversando” com as poucas nuvens que pairavam no horizonte, os pescadores lançaram os seus barcos no rio Cávado, com as suas águas serenas e ligeiramente onduladas, com intenção de uma surtida ao mar, zona costeira.
   A “maçaricada” aglomerava-se nas “croas”- areais-, disputando corridas de velocidade curtas, penicando e ingerindo o petisco alojado no areão.
   No cais norte, a  embarcação “actividade”, com os seus tripulantes Saganito “Velho”,-Anselmo Francisco Marques-, João da Libânia- João de Lemos-,  Manel Nibra,- Manuel Pinto de Jesus-, Zé “Taitas”-José Sousa Lemos- e Zé “Bebado”,-José Nibra- abandonaram a zona pesqueira de Fão e aventuraram-se  para outras “andanças”.
 Vamos até à barra, que deve haver peixe, disse o Saganito”Velho” para os seus amigos, depois de puxar a boina para trás do pescoço…!
 O Zé  Nibra,  ao ouvir este apelo, cheio de esperança, da velha raposa do rio e mar, que é o  Saganito, respondeu:
- Vamos lá  rapazes, porque neste Fão não ganhamos para o pão…
  Depois de deixar alguns tripulantes em terra, na zona de Fão, o João Libânio, Zé e Manel Nibra,  ainda criança com os seus onze anos de idade, Zé Taitas, Saganito e o Zé Nibra, “mestre” do barco “actividade”, remaram a toda a velocidade em direção a norte,  na ponta da restinga de areia que separa o Cávado do oceano Atlântico.
- O Saganito aflito disse à  “campanha”:
- Vou primeiro “arraiar o calhau” ali nos “fieiros,” estou aflitinho …
   Este felino pescador, olhou para a pancada do mar e viu centenas de barbatanas dorsais à superfície da água do mar, mesmo na rebentação.
- Meus Deus, estamos ricos, o peixe está grosso,  gritou o Saganito, ainda a apertar a fivela do esfarrapado cinto!
  Não façam barulho, apelou o Zé  Nibra para os seus tripulantes.
  Olha, são mujos, estamos desgraçados, não dá nem para uma malga de vinho no Abilio Coutinho ou Barrigana, desabafou o Zé Taitas.
  Na praia o João Conde e o professor Carlos Martins, velhos amigos, presenciavam, ao longe, esta cena, com os robalos a saltarem “fora da água”.
   Os nossos pescadores, incentivados pelo Saganito, lançaram, as redes- varga- ao mar, junto à restinga, e fizeram o cerco com as redes de “nylon”/algodão.
   Uns no barco, outros a pé, com a água do mar pela cintura, as redes cercaram os peixes que borbulhavam e saltavam  à superfície.
   Meu Deus, isto é um milagre disse o Zé, ao olhar para as centenas de robalos malhados…
   Puxem meus irmãos, são robalos e não mujos do mar, respondeu o Nibra, ainda criança e já na faina piscatória.
  Com o cerco feito, a rede foi arrastada para o areal da restinga e o peso dos enormes robalos, ia rebentando com ela. Valeu a força das ondas que ia empurrando a “robalada” para terra.
   O barco encheu-se de  enormes  robalos e partiu  em direção ao cais norte.
   A embarcação, apesar das fortes remadelas dos pescadores, andava pouco e quase que não saía do sítio, tal era o peso da “robalada”… .
   Já perto do cais, com os pescadores a suarem por todos os poros da pele, o sopro do Saganito na buzina fez-se ecoar pelos ouvidos das peixeiras que esperavam no cais, pelos  pescadores.
   Quando chegaram, ao cais, a “robalada” foi descarregada e, o Carlinhos da Jandira que tinha sido avisado deste milagre, depois das aulas no Infante Sagres, foi a correr pela ribeira até ao cais, onde se aglomeravam mais esposendenses, espantados por tão rica pescaria.
   Ena pá, é cada robalo, respondeu o Carlinhos da Jandira para o Toninho Zurique que estava ao seu lado.
   Na ribeira, decorria um jogo de futebol norte-sul com a bola de “capão” do Zé Pancas a ser mal tratada, tal eram as biqueiradas dos pés descalços do Paulo Gatinho, Aicha, Taxi, Augusto da Galga, Zé Conainas, Casimiro “Tri Tri”,  Armindo Murraca entre outros jogadores,  que , privilegiadamente, estavam calçados.
   Este jogo foi logo interrompido porque a garotada foi toda para o cais, ver a pescaria milagrosa.
  O peixe, depois de descarregado, começou a ser rematado e o guarda-fiscal, estava sempre presente, à espera do “dízimo”…
   A Rosinha da Arranca apareceu logo e disse, perante as incrédulas peixeiras que estavam ao seu lado:
 - Eu compro os robalos todos, vamos mas é pesá-los!
  A Rosinha já tinha o peixe destinado para uma encomenda e lá se começou a pesagem.
  O João da Libânio, sempre atento, avisou:
 - Então esta caixa não se pesa e está de lado!...
  Eu aqui não quero “ladroagem” ameaçou o João, com a sua voz ameaçadora e  trémula.
  Muitos robalos foram “desviados” mas a fartura fez esquecer esta pequena ”rapinagem” …
O Zé Nibra, mestre da embarcação, pegou nuns valentes robalos e deu-os ao Tio Miguel e ao seu irmão Sampaio e lá foram eles com os peixes para sustento da casa, com os braços doridos de tanto peso.
 O Manel Nibra também levou a sua “dose” e o robalo era quase do tamanho  dele…
 O Saganito, todo encharcadinho até aos ossos,  depois do peixe vendido, disse aos seus amigos:
- Para comemorar, vamos ao Barrigana beber umas malgas de vinho e um bacalhau frito, com iscas para encher o “bandulho”, convidou, gaguejando, o velho Saganito.
O Zé” Bêbado” levantou a voz e disse:
- Meus amigos, aqui mando eu e vamos mas é à Nazaré que tem polvo frito!
O Saganito velho protestou e mandou uma “carvalhada” e foi em direção à tasca da Berta que ficava perto de casa, embora o vinho lá, soubesse  a “pozes”…
  Mas, primeiramente, o Saganito tinha passado pela tasca do Zé Feliz “humedecendo” a garganta que estava sequinha!
  No meio desta confusão, cada um foi para a sua tasca e prometeram pagar as despesas depois do dinheiro “partido”.
 O sol estava a desaparecer no horizonte, naquela tardinha de Verão e todos recolheram às suas casas, esperando, mais tarde, pelo dinheiro da Rosinha para a partilha da “guita”, o que veio a acontecer porque a Rosinha Peixeira era mulher de palavra.
  Foi um dia de pescaria de robalos que não há memória em Esposende e a maioria deles pesavam três a quatro quilos e alguns deles, pesavam onze a doze quilos..…
  Por sinal, ainda com os meus onze aninhos de idade, recordo-me perfeitamente desta pescaria e nunca tinha visto tanto robalo na minha vida e tão grandes!
   O cais norte estava semeado de robalos prateados e fresquinhos, a maioria deles, vivinhos,  saltando  na rampa do cais, em sinal de desespero …
   O sol desapareceu no horizonte, num  crepúsculo vermelho amarelado, e o velho cais norte ficou deserto mas, penso eu, muito feliz por albergar no seu “regaço”, o “calor ofugante” dos “robalões”…
 
Carlos Manuel de Lima Barros.

Nota: Entrevistas/conversas informais com a D. Olívia, esposa do José Nibra, Manel Nibra, João da Libana, Carlos “Bicho”, João Careca, Manuel, Laguna, Milo Barros,  Bidú, Santos Coutinho, Tonó, Lano V .Boas, Chico …

( 3 - Cantinhos dos lobos do mar)
       - Mês de fevereiro –
            22/01/2013
Fotos: CARLOS BARROS







Cantinho dos  ”Lobos do Mar “

                      Manhã fatídica…
   Era uma manhã serena,  dia seis de dezembro de mil novecentos e oitenta e quatro, com uma ténue névoa  afagando  a superfície do mar, um pouco agitado com um vento  “roçando “ao tempestuoso com bandos de gaivotas esventrando os ares, anunciando mau tempo.
   Os barcos de pesca de Esposende, várias motoras e traineiras,  sulcavam o mar, à procura do pescado porque os “tempos eram de miséria e fome”.
   Na  então vila de Esposende,  tinha soado que na costa havia muito camarão e estava a “monte” e a mensagem chegou ao João do Fá-João Marcelino Lima de Barros-, cuja motora estava em plena faina nas águas marítimas de Viana do Castelo onde o peixe e o marisco  abundavam.
   A traineira do José Paquete tinha apanhado muito camarão na véspera e esta notícia espalhou-se aos “sete ventos”.
   O João do Fá, mestre da embarcação “O mar obedece a Jesus”, com os seus tripulantes, os irmãos Tino –Ernestino Moreira Ferreira- e Tone –António Moreira Ferreira-, ambos de Fão, e o “Morrosol”-Alfredo de Jesus Bernadino- estiveram no arrasto ao camarão e no regresso, a Esposende, onde o João tencionava  pintar a motora, mesmo à entrada da barra, sempre traiçoeira e mortífera, a motora ficou em seco,- na surriba-  tendo poderosas vagas apanhado de lado a embarcação, num ímpeto de força desmesurado,  atingindo  a casa de leme-cabine- que foi “arrancada” e onde se encontrava o mestre João do Fá, que teve morte quase imediata, tendo os demais tripulantes sido projetados ao mar e o infeliz Tone fangueiro, debateu-se corajosamente contra as águas furiosas desse mar encapelado, e esteve a lutar pela vida durante muito tempo até que, fisicamente,  soçobrou, afogando-se.
   Os demais tripulantes, conseguiram salvar-se, tendo sido um deles,  o Alfredo “Morrosol” sido transportado na ambulância, dos Bombeiros Voluntários de Esposende  para o hospital Valentim Ribeiro tendo os bombeiros Adélio Pezinho e o Artur Miquelino, prestado  os primeiros socorros de reanimação.
Dizia o Adelinho aflito:
-Artur, o Alfredo está morto! Ele está branco como a cal!---
-Espera, vamos fazer reanimação para salvar o homem, disse desesperadamente o Artur Miquelino.
Depois de várias massagens abdominais, o Alfredo Morrosol começou a abrir os olhos e recuperou a consciência.
-Estou a tremer,  dizia o Morrosol, tiritando de frio ao Adelinho.
-Cala-te, estás vivo meu homem, saltou de contentamento o Artur e o Adélio Pesinho.
   O Ainho -Manuel Viana Eiras-, familiar do Tone e Tino fangueiro, era para ir nesta motora, ficou na cama porque anteriormente tinha estado no café ”Doli,” junto aos Bombeiros antigos, até às duas da madrugada, com outros pescadores, seus amigos, a matar a sede…
   Para além do Ainho, faziam parte da tripulação da embarcação “Mar obedece a Jesus”, o João “Jeromes”, filho do João do Fá, o Bidú e o Rogério “Chana” que tiveram a felicidade de não embarcarem na motora, nesse dia um pouco tempestuoso e de maus presságios.
   Esposende ficou de luto com a perda destes dois esposendenses, com graves repercussões para a família das vítimas, já que o João do Fá, deixou  cinco filhos órfãos e a viúva Ana Maria, mergulhada em tamanha tragédia teve que enfrentar a vida para sustentar os seus filhos,-um rapaz e quatro raparigas- e que, corajosamente, conseguiu, sendo agora pessoas bem sucedidos na vida mas, sempre amargurados pela morte do seu querido pai.
  O João Marcelino, pescador experiente, muito  corajoso e aventureiro, na ânsia de lutar pela vida, ficou perpetuado no seio da classe piscatória, era um pescador sociável, sendo uma referência como homem de coragem e conhecedor dos meandros e traições do mar e que, naquele malfadado dia, a fúria do mar e a  inconstante barra traíram-no numa “emboscada” inesperada e fatídica.
   Fez no dia vinte e seis de dezembro, vinte e oito anos, que aconteceu esta tragédia em que o mar ”não obedeceu a Jesus” e o Alfredo, por sinal, de Jesus, conseguiu milagrosamente “safar-se“ retomando a vida de pescador e, mais tarde de Trolha, onde faleceu, ao cair abaixo de um andaime quando trabalhava na construção civil.
   No dia anterior, o Santos Coutinho, também pescador experiente, tinha deixado quatro margotas-peixes- no Café Oliveira para o amigo Alfredo “Morrasol” e, infelizmente, não chegaram ao seu destino.
    O “Mar obedece a Jesus” foi vítima de um mar inesperado, que “cravou” as suas ondas assassinas contra a embarcação, enlutando Esposende e a sua classe piscatória, em especial.

Carlos Manuel de Lima Barros
3 de dezembro de 2012

(Entrevistas com Romão Miquelino, Santos Coutinho,  Ana Maria,  Tonó, “Ainho”-Manuel Eiras,-  João Careca e Adélio V.Boas








As motoras/traineiras  de Esposende:



  Esposende, não há muito tempo, teve várias motoras e traineiras onde os pescadores exerciam a sua atividade piscatória e ganhavam o  “pão nosso de cada dia”, tendo que enfrentar, corajosamente, as   agruras do mar e as intempéries rigorosas, perante uma barra sempre traiçoeira e extremamente perigosa.








  “CANTINHO DO PESCADOR.”:


     “O beijo da vida…”

    Estava uma manhã serena, com uma névoa marítima a refrescar os corpos da tripulação da motora Filomena Antonieta, propriedade do Mestre João Careca – João Pinto Loureiro- e esta embarcação, depois de entrar  a “toda a carga” no mar, serpenteando-se  ao largo da restinga, lançou-se à pesca  de arrasto, do camarão,  ao longo da  costa.

   Estavamos em pleno Verão, onde o sol ainda “ressonava”…

   A tripulação da Filomena Antonieta, constituída pelos esposendenses Rodolfo “Ilhoca”-Rodolfo Eiras Afonso Neto-, que ia destemidamente ao leme, Tone Pirata, Chico-irmão do João Careca-, “Sai Sai” – Anselmo Saganito-, Augusto Sancho, Alfredo “Morrossol”, Milo-Emílio Lima- e o Mestre João Careca, pescador experiente e respeitável, velho “Lobo do Mar”, lançou as suas redes de arrasto, ao longo da costa, esperançosos numa boa pescaria de  camarão que, possivelmente, seria vendido à Teresa do Castelo, comerciante dinâmica e simpática mas, uma mulher de “armas”, uma “expert” a comercializar o marisco – lagosta, lavagantes, sapateiras, “caranguejas”,  camarão…-pescado nas águas marítimas, a poucas milhas da nossa orla marítima...

   A motora, em plena atividade piscatória, lá ia na sua atividade de arraso, com as “portinholas” beijando o fundo do mar,  “recebendo no seu “regaço” o marisco e eis que o sempre brincalhão Milo,  ilusionista “de profissão”, dirigiu-se ao “Ilhoca” e pergunta-lhe:

 - Vamos fazer uma aposta “Ilhoca”?

  O que é que queres,  já me vais lixar , “Calhalho”, disse gaguejando o “Ilhoca”….

  Olha,  vou  engolir  aquele linguado que está no convés !...

  Queres apostar  duas malgas no barrigana ou no Abílio Coutinho,  desafiou o Milo ao seu parceiro de barco.

  O “Ilhoca” curioso, colocou a boina para trás, ” arregaçou “ os olhos, deixou  o gigão que tinha nas mãos e disse-lhe:

 -“Nem és homem nem és nada”, se não fizeres isso, mas olha bem, as malgas de vinho não aposto porque tu só podes é beber pirolitos ou laranjada, respondeu, com o seu sotaque  o “Ilhoca”….

    O Milo pega no linguado, perante os olhares dos amigos e mete-o  pelo “garganil “ abaixo mas, desgraçadamente, o  peixe não deslizou e ficou encravado na garganta do aflito Milo.

    Aí que vou morrer, gritava o Milo, já a ficar negro, como  carvão…

    Vai buscar um anzol do congro, gritou o Chico ao Sancho e ao “Sai Sai” que estavam mais perto!

    O “Morrassol” e o Tone Pirata já rezavam ao Nosso Senhor dos Aflitos e à Nossa Senhora da Saúde  pela saúde do Milo, cada vez, de rosto mais branco como a cal.

    O Milo já estava  a “espernear”, com falta de ar” e, num  gesto  fulminante, o Chico  encostou a boca à do Milo, e com os  seus poderosos dentes, crava-os no rabo do linguado e retira-o da boca do desesperado e amarelado Milo que ficou com a boca ensanguentada porque os seus lábios  ou ”beiças”, como dizia o  Sancho,  foram lixados pela  rugosa pele do  linguado areeiro.

   Após breves minutos, já restabelecido, o Milo abraçou-se ao Chico e, com voz trémula, disse-lhe:

- Irmão, salvaste-me a pele e já estava no “outro mundo” se não fosses tu, meu irmãozinho!...

  O Chico e o seu irmão João Careca,  que  assistiu muito aflito ao “salvamento” do Milo, ficaram descansados ao ver o Milo a respirar e aos “pinotes” de contentamento.

  Maria Antonieta, depois de recolher as redes  com uma boa pescaria, regressou ao cais Norte de Esposende, atracando nas calmas águas do Cávado, onde algumas peixeiras e a Teresa do Castelo, impondo a sua compleição física e empurrando-as para o lado,   esperavam pelo pescado.

  Comprada toda a “mariscada”, a Teresa dirijia-se à loja do Coutinho, onde o Carlinhos da Jandira, pesava todo o marisco, inclusive, grandes lavagantes e lagostas na balança de pratos que reluziam, depois de serem lavados, com areia e limão, pela Glorinha e pelo Carlinhos, nas horas vagas.

     Como  recompensa, a Teresa oferecia um pequeno lavagante ao Carlinhos que a sua Tia Alice cozia numa panela, sendo logo ingerido, acompanhado com um bom traçado-vinho com gasosa- e um sumol que o Carlinhos bebia, deixando, um “fundinho” no copo para saborear com o caldo de feijão com  “troços”.

     A Maria Antonieta, comprada pelo sr. João Careca por quarenta contos, (e com anzóis ,como afirmou…) a um guarda-fios, que se tinha tornado pescador, acostou ao longo do paredão, sendo segura pelas fortes “amarras” às argolas, junto às escadinhas, onde “se curavam” os tremoços da M. Amália-famosa tremoceira- e da Tia Aninhas.

   Toda a tripulação, depois de lavar todo o convés do barco e do porão, veio para terra, para descansar por umas horas,  todavia foram “assinar o ponto”, comandados pelo Tone Pirata, Ilhoca e “Morrassol”, ao Barrigana, outros porém, dirigiram-se à Lucas e ao Coutinho, para  provarem o saboroso vinho do Tio Firmino de Vila Cova, que deixava marca nas malgas. Era um tintol de luxo, como dizia o Tio Rogério e o Geno nas suas conversas na tasca/armazém do Coutinho, sentados nos sacos de feijão e de milho …

   O Pezinho, cliente assíduo, do Coutinho, bebia uns “penaltis” valentes e a garganta nunca secava…

   O José da Lucas, um “bebedor” sapiente e moderado, uma malguinha, no máximo duas, dava-lhe para toda a tarde, e o aperitivo era falar e defender o Benfica, acolitados pelo Rogério que só falava do Coluna que para ele, era  o melhor jogador do Benfica, dizia-me ele nas suas   “vivas conversas”.


   Nesses tempos,  os pescadores de Esposende no inverno, raramente iam ao mar, que estava quase sempre “virado ou picado” e conviviam, naturalmente, nas Tascas, onde passavam as tardes, conversando e discutindo as suas histórias, as suas ricas vivências, um património histórico/cultural que  deveremos preservar, registando-as e divulgando-as.


Carlos Manuel de Lima Barros


Nota:

Esta história é verídica e foi-me contada e recontada pelo Emílio Lima- Milo-,  Francisco  Loureiro- -Chico-, João Pinto Loureiro- João Careca- e teve como palco, a motora Filomena  Antonieta, no longínquo ano de 1967.